27.7 C
Vitória
sábado, 27 abril, 2024

Sabor de riqueza, aroma de progresso

Da lavoura à xícara de café, como esse simples fruto guiou a história e ajudou a forjar a identidade de um estado

Por Robson Maia

Um fruto oval, vermelho e irregular. Com pouco mais de um centímetro, mas com aroma gigante, imponente e poderoso. Um fruto tão pequeno, mas capaz de guiar a história de praticamente 46 mil quilômetros quadrados e quase quatro milhões de pessoas. As histórias do café e da formação e desenvolvimento do Espírito Santo muitas vezes se confundem pela proximidade. E o resultado dessa mistura retrata em grande parte o que o estado é hoje.

- Continua após a publicidade -

São vários os relatos – e até lendas – que tratam do “surgimento” do café no mundo. A mais popular delas é a que dá conta de que em meados do século XV, um pastor da Etiópia notou que suas cabras, ao ingerirem os frutos de um determinado arbusto, se tornavam mais vivas e adquiriam mais disposição.

Ele resolveu então fazer uma infusão com os tais frutos e beber, acreditando numa ativação de ânimo, do estado de espírito e numa maior disposição física, o que de fato ocorreu. Daí em diante, levado pelos europeus colonizadores, o mundo experimentaria o famoso café, que acompanha a rotina de milhares e milhares de pessoas, passeando pelo despertar, finalizando as refeições e compondo criações gourmets.

Foi somente a partir de 1770 que o Brasil conheceu as primeiras grandes lavouras de café e pôde entender o grão como um produto de grande potencial nacional e mundial. Trazido do Pará, onde chegou em 1720, para o Rio de Janeiro – então capital da colônia – pelo Desembargador João Alberto Castello Branco, o cultivo cresceu e gerou as primeiras produções de café em larga escala, o que despertou a atenção dos estados vizinhos. Apesar da hegemonia carioca na produção até meados de 1885, São Paulo, Minas Gerais e o Espírito Santo vislumbraram no grão um potencial econômico e uma opção de competitividade no mercado interno brasileiro.

O café capixaba

A origem dos cafezais no Espírito Santo ocorreu na metade do século XIX, na região sul do estado. Devido à proximidade com o Rio de Janeiro, as técnicas de plantio, colheita e torra foram importadas do estado fluminense para o solo capixaba. O processo de expansão dos cafezais em direção ao sul da capitania espiritossantense aconteceu de forma natural, em função do avanço por terras desocupadas e férteis em relação ao norte carioca.

Ao longo dos anos, o sistema de produção no Espírito Santo foi ganhando uma identidade própria, de acordo com as especificidades do ambiente. A expansão da cultura cafeeira para as regiões centro-sul e norte do estado substituiu, naturalmente, o modelo primário exportador da cana-de-açúcar. O espaço de principal produto agrícola foi cedido ao café, posição que perdura até os dias atuais.

“O papel do café foi expressivo no Brasil como um todo, e no Espírito Santo ele vai ser a identidade local por vários anos. Foi a partir dele que o território capixaba foi desbravado. Tudo começa e se mantém, em grande parte, na agricultura familiar, apesar de outros modelos de produção relatados ao longo dos últimos séculos”, afirma o doutor em História pela Universidade de Minho, em Portugal, Fabio Paiva.

Outro detalhe para o qual os historiadores chamam a atenção em relação ao papel do café na história capixaba é a mudança na percepção da Coroa Portuguesa em relação ao território. No século XVII, parte do território que hoje pertence a Minas Gerais, palco das atividades de mineração da história brasileira, chegou a pertencer ao Espírito Santo. No entanto, em função de um decreto régio, a região das Gerais – como era conhecida – foi desmembrada da capitania litorânea no intuito de evitar uma possível evasão ilegal do ouro e de pedras preciosas.

Nesse período, houve um empobrecimento da vida capixaba, apesar de certas atividades econômicas e comerciais, como a produção de algodão e farinha de mandioca, haverem permanecido. Mas eram atividades de pouca expressão econômica. É com o declínio da mineração e o crescimento da cafeicultura que o Espírito Santo volta a gozar de certo prestígio junto à Corte portuguesa e, posteriormente, ao Império brasileiro.

“É um equívoco pensar que o Espírito Santo ficou abandonado ou como uma ‘barreira verde’. Há, sim, um empobrecimento, por não se poder explorar uma parte significativa do antigo território, mas o café coloca a capitania capixaba em destaque novamente, claro “, apontou a doutora e pesquisadora em História, Patrícia Merlo.

Força-motriz do progresso

Em 1850, já se fazia notável a importância da cultura do café no setor econômico capixaba. As cidades passaram por transformações de modo a adequar sua capacidade de produzir, armazenar e escoar o café produzido localmente. De certo modo, a vida passou a girar em torno da cafeicultura, conforme aponta a historiadora e pesquisadora da Universidade Federal do Espírito Santo, Claudia da Silva Ferreira.

“O desenvolvimento econômico do Espírito Santo esteve, no século XIX, diretamente relacionado ao avanço da produção cafeeira e à ocupação das terras do sul, principalmente do vale do Itapemirim, por fluminenses e mineiros. A ocupação das terras e o crescimento da produção cafeeira levaram à necessidade de se criar formas de escoar a produção da região, que era transportada para os portos do Rio de Janeiro através do Porto de Itapemirim” relata a pesquisadora em seu artigo a respeito do impacto do café na vida capixaba.

Sabor de riqueza, aroma de progresso
Uma xícara de café faz parte do dia a dia do capixaba

O principal aspecto a revelar a influência do café, à época, foi a construção de ferrovias que pudessem facilitar o trânsito interno, sobretudo para a capital fluminense. De certa forma, a “conexão” com o Rio de Janeiro representava uma afirmação do potencial capixaba.

Cachoeiro de Itapemirim, que por anos exerceu o papel de centro econômico estadual, era o ponto focal entre a produção agrícola do sul capixaba e as demais regiões do país, sobretudo pela sua condição de porto fluvial capixaba. A centralização econômica para o município do sul ganhou ainda mais força no início da década de 1880. Na ocasião, o governo deferiu a construção de duas linhas férreas, sendo uma ligando a capital, Vitória, a Cachoeiro, e uma outra de Cachoeiro até Duas Barras, no Rio de Janeiro, com um ramal para Castelo e outro para Alegre.

A construção do trecho entre Cachoeiro de Itapemirim e Duas Barras, à época o mais importante, levou pouco menos de dois anos, tendo suas obras iniciado em janeiro de 1886 com término em setembro de 1887. A extensão dessa que foi a primeira estrada de ferro da Província do Espírito Santo era de 71 km.

A chegada da malha ferroviária à província capixaba representava uma mudança significativa no estilo de vida da população local. Os contatos com a capital brasileira, antes restritos, se tornaram mais comuns. Costumes e estilo de vida, como a cultura boêmia e as modas europeias, chegariam aos poucos em solo capixaba. De certa forma, a subsistência do Espírito Santo já estava ligada ao fruto do cafeeiro: economicamente, socialmente e estruturalmente.

Café e urbanização

Abastecendo o mercado nacional e até internacional, como os EUA e a Europa, a produção acelerava, estimulando na província a busca por alternativas de escoamento. Neste mesmo período, surgiram estradas de rodagem, navegação interprovincial e o crescimento das atividades do Porto de Vitória, que despontaria como fundamental para o desenvolvimento da capital.

A “roupagem” de Vitória, que não participa diretamente do cultivo do café, esteve diretamente relacionada à expansão do cultivo do grão no interior e, sobretudo, aos impactos diretos de sua comercialização, como a expansão dos meios de transporte.

“Foi graças a essa produção cafeeira muito expressiva, do final do século XIX, que tivemos toda uma reestruturação urbana no Espírito Santo. Acontece uma série de obras arquitetônicas, abertura de grandes vias, construção de ferrovias. Tudo isso está ligado ao transporte do café. É uma vida urbana cada vez mais espelhada no Rio de Janeiro, onde está a Corte”, ressaltou Merlo.

Em paralelo às políticas federais de “branqueamento” da população brasileira, o Espírito Santo se enxergava cada vez mais como alvo da migração europeia não-portuguesa. Povos italianos e alemães, sobretudo, encontravam na região a possibilidade de explorar terras para a produção agrícola e geração de renda.

O gatilho para a intensificação no fluxo migratório europeu para terras capixabas está na abolição da escravidão, em 1888. As grandes fazendas de café, que possuíam no sistema escravo a sua força de trabalho, seriam repartidas, ou seja, loteadas e, posteriormente, “alugadas” aos imigrantes.

“O ponto que precisamos frisar é que já existia essa migração europeia para o Brasil, por vários fatores. O fim da escravidão, de certa forma, potencializa esse processo, porque agora é necessária a ocupação desses postos de trabalho. Mas o que vemos é uma reconfiguração: as fazendas são divididas, outros produtos concorrem com a produção do café, por exigirem um espaço relativamente menor para cultivo, e isso vai resultar na exploração, de algum modo forçada, para certos interiores do estado”, explica Fabio Paiva.

Conilon e tecnologia

Anos mais tarde, o Espírito Santo conheceria o tipo de café que o alçaria à posição de destaque em nível nacional e, posteriormente, em nível mundial: o café Conilon. A chegada das primeiras mudas aconteceu ainda no governo de Jerônimo Monteiro, no início do século XX. Hoje, três em cada quatro sacas de Conilon produzidas no Brasil saem das lavouras do Espírito Santo, responsáveis por até 20% da produção mundial.

Também conhecido como Robusta, o Conilon consiste em uma variedade de café que tem como característica principal ser rústico e ter grãos que apresentam um grande teor de cafeína. Em razão da sua rusticidade e exigência menor no cultivo, a produção capixaba se expandiu em um grau expressivo.

O tradicional Arábica prosseguia nas lavouras capixabas, mas a partir da década de 1930 houve um crescimento significativo do Conilon. A região sul do Espírito Santo, especialmente os municípios de Cachoeiro de Itapemirim, Castelo e Alegre, se destacaram como os principais polos produtores desse tipo de café. No entanto, o Conilon tem hoje 80% de sua produção concentrados nas regiões nordeste e noroeste do Espírito Santo, onde é a principal fonte de renda em 80% das propriedades rurais capixabas localizadas em terras mais baixas e quentes.


Confira os principais municípios produtores de Arábica e Conilon no estado:

Conilon: Rio Bananal, Vila Valério, Jaguaré, Nova Venécia, Sooretama, Linhares, São Mateus, Pinheiros, Governador Lindenberg, Boa Esperança, Vila Pavão, São Gabriel da Palha, Colatina e Marilândia.


O ponto fundamental para que o Conilon atingisse um nível de produtividade tão acentuado – de três a quatro milhões de sacas de 60 kg, em média, por ano, – foi o investimento em técnicas de cultivo. As pesquisas e a evolução no sistema de plantio foram basilares para o aumento expressivo na produção. [inserir box1]

“Após a década de 1970, tem-se o desenvolvimento das primeiras técnicas para a cultura de café Conilon em larga escala no estado. O que foi fundamental nessa ‘virada de chave’ foi o fortalecimento dos sistemas de cooperativas e a criação do Incaper. A chegada das pesquisas ao campo e a introdução à tecnologia alteram positivamente a produção cafeeira, que quase duplica em produtividade”, destaca o doutor e pesquisador em Produção Vegetal, Abraão Carlos Verdin Filho.

Com equipamentos que aceleraram o método de produção, como de averiguação da “saúde” da planta e do solo, e a chegada de máquinas capazes de realizar colheitas em larga escala e, até mesmo, a separação de frutos, a produção capixaba atingiu um nível de, aproximadamente, 50 sacas por hectare. “Hoje nós temos em torno de 47 a 50 sacas em média por hectare sendo produzidas. Alguns atingem números considerados mágicos, como 100 sacas. Então, a evolução se dá muito nesse aspecto”, frisou Verdin.

Com a colaboração do Incaper, que tem participação direta nos resultados obtidos pelo estado na cafeicultura, esta segue sendo a principal atividade agrícola do Espírito Santo, desenvolvida em todos os municípios capixabas – com exceção a Vitória. O órgão permanece na base de apoio às produções rurais, com pesquisas e auxílio aos pequenos, médios e grandes produtores rurais.

A cafeicultura, atualmente, segue sendo a principal atividade agrícola do Espírito Santo, desenvolvida em todos os municípios capixabas – com exceção a Vitória. Atualmente, existem 402 mil hectares em produção no Estado. De acordo com os dados informados pelo Instituto Jones dos Santos Neves, a atividade cafeeira, somada às demais produções da agropecuária, representa de 4% a 5% do Produto Interno Bruto (PIB) capixaba, que já é de R$ 45,4 bi no primeiro trimestre de 2023. O estado é o 2º maior produtor brasileiro de café, com expressiva produção de Arábica e Conilon, sendo responsável por mais de 30% da produção total brasileira.

Entre as principais evoluções percebidas na cafeicultura capixaba ao longo dos anos estão:

  • Seleção e melhoramento genético: desenvolvimento de variedades de café mais produtivas, resistentes a doenças e adaptadas a diferentes condições climáticas é uma técnica fundamental na evolução da produção de café.
  • Manejo integrado de pragas e doenças: uso de técnicas de controle integrado de pragas e doenças para minimizar os danos às lavouras de café.
  • Sistemas de irrigação: o uso de sistemas de irrigação eficientes e adequados às necessidades hídricas das plantas de café é fundamental, especialmente em regiões com escassez de água.
  • Práticas de manejo do solo: técnicas como a adubação equilibrada, a cobertura do solo com matéria orgânica e a rotação de culturas ajudam a manter a fertilidade do solo, melhorar a retenção de água e reduzir a erosão.
  • Colheita seletiva: a colheita seletiva, que envolve a colheita dos frutos de café maduros em diferentes estágios, permite a obtenção de grãos de melhor qualidade.
  • Beneficiamento do café: cada uma das etapas do beneficiamento do café, que inclui o descascamento, secagem, classificação e armazenamento, também passou por avanços tecnológicos específicos ao longo dos anos.

CCCV: o local onde passado, presente e futuro se encontram

Sabor de riqueza, aroma de progresso
O CCCV foi construído próximo ao Porto de Vitória para facilitar o transporte e a exportação do café produzido na região.

No final do século XIX e início do século XX, o Espírito Santo experimentou um período de grande crescimento na produção de café, tornando-se um dos principais estados cafeicultores do país. Com a expansão dessa atividade, foi necessário criar um espaço onde os produtores e comerciantes pudessem negociar seus produtos de forma mais organizada e eficiente.

Assim, em 1908, foi inaugurado o primeiro Centro do Comércio de Café de Vitória (CCCV). O local foi construído no coração da cidade, próximo ao Porto de Vitória, para facilitar o transporte e a exportação do café produzido na região.

O CCCV funcionava como um ponto de encontro para os cafeicultores, que traziam suas safras para serem avaliadas e negociadas. No local, também eram realizados leilões, em que os lotes de café eram arrematados por compradores interessados. Além disso, o centro contava com escritórios, armazéns e outros serviços relacionados à comercialização do café.

Ao longo das décadas seguintes, o Centro Comercial de Café de Vitória passou por diversas transformações e modernizações para acompanhar as mudanças no setor cafeeiro. Com o passar do tempo, outras atividades econômicas ganharam importância no Espírito Santo, e a produção de café foi perdendo espaço para outros setores.

Atualmente, o Centro do Comércio de Café de Vitória diversificou suas atividades e o local abriga empresas, escritórios e estabelecimentos comerciais de diversos segmentos. No entanto, a história e a importância do café na região são preservadas e celebradas, sendo o CCCV um símbolo dessa vitoriosa trajetória da cafeicultura capixaba.

A matéria acima é um conteúdo da edição impressa de ES Brasil n°213/2023. Clique aqui para ler a revista completa.

Entre para nosso grupo do WhatsApp

Receba nossas últimas notícias em primeira mão.

Matérias relacionadas

Continua após a publicidade

EDIÇÃO DIGITAL

Edição 220

RÁDIO ES BRASIL

Continua após publicidade

Vida Capixaba

- Continua após a publicidade -

Política e ECONOMIA