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terça-feira, 19 março, 2024

Na cor da pele

Precisamos entender a realidade da nossa sociedade. Quem não conhece o seu passado, não conhece o seu presente

O Brasil foi o último país a abolir a escravidão. Esse fato histórico, aparentemente longínquo, deixou, na verdade, profundas marcas na sociedade brasileira. Para entendê-las, é preciso não esquecer os navios negreiros e os objetos de tortura. É preciso lembrar que a abolição foi lenta. Mas é preciso também pensar o lugar que a ciência ocupou na consolidação do preconceito contra o nosso provo preto. Para que se lute contra o racismo é preciso primeiramente reconhecer que ele existe. Sem essa “confissão” tira-se do foco o alvo que se quer atingir.

A esperada cidadania após a abolição não aconteceu e, até hoje, é uma luta constante em uma sociedade em que a desigualdade racial é arraigada e as tentativas de apagar a memória da barbárie contra um povo escravizado são permanentes, quer pela eliminação de documentos, quer pela disseminação do mito da democracia racial. A pele preta ainda separa.

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Ao redor do mundo, os movimentos negros sempre buscaram uma coisa em comum: o respeito aos direitos civis da população negra e o combate ao racismo, enraizado até hoje na sociedade.

Com diferentes abordagens, cada Movimento Negro busca particularidades que fazem parte da realidade de cada país. No Brasil, por exemplo, a luta da nossa população preta gira em torno do reconhecimento do racismo como crime, da dívida histórica dos mais de 300 anos de escravidão e da igualdade de oportunidades e inclusão social.

A última semana de maio, e os primeiros dias de junho deste ano, estão sendo marcados por protestos nas principais ruas dos Estados Unidos, França e Holanda. Na imprensa e nas redes sociais, as imagens de lugares vazios, uma constante em período de distanciamento social, deram lugar a imagens de aglomerações. Manifestantes americanos estão indo às ruas pedir justiça pela morte de George Floyd, um segurança de 46 anos, preto, morto no dia 25 de maio, por um policial na cidade de Minneapolis, no estado do Minnesota. De forma cruel, não atendendo ao seu pedido de que não conseguia respirar. Morreu assassinado brutalmente, por um policial claramente racista, haja vista a sua ficha funcional repleta de irregularidades. Toda essa barbárie registrada em som e imagem, vista em todo o mundo.

Na cor da pele

O racismo piorou? Não. Ele só passou a ser mais divulgado, como todo o mundo assistiu a “execução” do George Floyd. Imagens vistas por um público negro muito maior, do que aqueles que moram nas comunidades onde os casos acontecem. Isso vira a chave. O que nós estamos vendo na escalada desses últimos anos é que a violência nunca parou, ela sempre esteve presente como forma de controle e de manutenção da violência racista que o Estado põe sobre a população preta.

Enquanto isso, no Brasil: Na mesma semana da morte de Floyd, o menino João Pedro Mattos Pinto, 14, foi morto dentro de casa por policiais, durante uma operação em São Gonçalo, Rio de Janeiro. Aqui, nunca houve uma política explícita de segregação racial, mas a desigualdade é bem demarcada etnicamente quando se olham os números. Negros compõem a maioria da população brasileira (56%) — para o IBGE, a categoria abarca pretos e pardos. Entretanto, homens negros têm expectativa de vida até 4,6 anos menor que a de homens brancos. No mercado de trabalho, uma pessoa negra e uma pessoa branca com a mesma formação têm diferença salarial de 31%. Na violência cotidiana, os dados passam batidos.

Temos evidencias claras de como a população preta é invisível aos olhos das políticas públicas, onde nesta terrível pandemia de Covid-19, são os negros que compõe em grande parte, as estatísticas de maior letalidade, devido a suas comorbidades genéticas, associadas às condições socioeconômicas de abandono sanitário, vivendo nas favelas, no subemprego, formando uma grande massa de desempregados.

O movimento negro surgiu quando o primeiro preto fugiu da senzala. Não tem nada a ver com esquerda ou direita, tem a ver com uma questão social, uma questão do povo. Precisamos entender a realidade da nossa sociedade. Quem não conhece o seu passado, não conhece o seu presente. O presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, deveria conhecer o seu passado, creio que até conheça, mas surpreendentemente insiste em negar, quando declarou e classificou o movimento negro como “escória maldita”, que abriga “vagabundos” e chamou Zumbi dos Palmares, símbolo da resistência negra no Brasil escravocrata, de “um filho de prostituta, que escravizava pretos”. Os objetivos da fundação é promover e apoiar a integração cultural, social, econômica e política dos afrodescendentes, e implementar políticas públicas para dinamizar a participação dos afrodescendentes no processo de desenvolvimento sociocultural brasileiro.

Sérgio Camargo também manifestou desprezo à agenda da “Consciência Negra”. Chamou uma mãe de santo de “macumbeira” e prometeu botar na rua diretores da autarquia que não tiverem como “meta” a “demissão dos esquerdistas”. As afirmações foram feitas durante reunião com dois servidores, no dia 30 de abril último.

A indicação desse presidente para a Fundação Cultural Palmares é uma grande contradição em seus termos. A Fundação foi criada no bojo das conquistas da Constituição de 1988, que foi uma constituição muito generosa no que se refere aos direitos civis, neste caso, aos direitos das população de raiz afro-brasileira; é uma contradição imensa o órgão ter na presidência um jornalista que diz que “a escravidão foi benéfica para os escravos”. O que, historicamente está comprovado que não foi.
E não nos esqueçamos de que a vida do nosso povo preto importa. E muito!

Manoel Goes Neto presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Vila Velha-IHGVV e diretor no IHGES.

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