Enchentes, incêndios, drogas e apostas promovem dependências. Momentos de emergência ou carência extrema podem nos levar a aceitar soluções falhas
Por Robson Melo
Enchentes e incêndios são situações de emergência extrema, e lidar com suas consequências traz novas urgências ou o prolongamento das originais. Todo ser vivo, nesses momentos, busca garantir sua sobrevivência.
Em 1979, ao longo do Rio Doce, uma grande enchente atingiu cidades ribeirinhas de Minas Gerais e Espírito Santo. A população dessas regiões enfrentou momentos de intensa aflição, especialmente no bairro Santa Terezinha, em Governador Valadares, onde os moradores se mantinham em alerta para remover seus pertences à medida que o nível das águas subia.
Assim como muitos que viviam às margens do Rio, essas pessoas monitoravam a altura da água para decidir o momento de partir. Muitos foram forçados a abandonar suas casas, correndo o risco de ver seus familiares e pertences serem levados pela correnteza.
Cenas como essa, impulsionadas pelas mudanças climáticas, tornam-se cada vez mais frequentes, gerando histórias que misturam crise e solução. Um jovem observava o nível das águas quando encostou o cotovelo numa cerca de arame. Ao tocar um dos mourões, foi subitamente invadido por uma colônia de formigas que, como outros animais e insetos, tentava escapar da enchente.
Imagine o quão doloroso foi para esse rapaz, sem contar o risco de envenenamento, ser alvo de tantas picadas simultâneas. Ele precisou de socorro imediato e foi levado a um hospital, onde, felizmente, se recuperou.
E quanto às formigas? Para elas, o cotovelo do rapaz era a chance de escapar da morte certa pelas águas. Era o barco salva-vidas que tanto precisavam. Mas, ao embarcarem nessa “cotovelar canoa furada”, acabaram perecendo enquanto tentavam sobreviver.
Trazendo essa situação para nosso cotidiano, podemos dizer que momentos de emergência ou carência extrema podem nos levar a aceitar soluções falhas, assim como aconteceu com as formigas. É o que está ocorrendo com muitos jovens em situação de vulnerabilidade, que acabam embarcando em “canoas furadas”, seduzidos por alternativas malditas. Muitos são levados ao mundo das drogas e do crime, pois não lhes são oferecidas “mãos” que os amparem ou que apontem caminhos dignos de vida, ao invés de trajetórias de morte.
Um outro exemplo recente de uma perspectiva nociva são as viciantes apostas online, conhecidas como “bets”, que têm atraído tanto jovens quanto adultos, drenando os já escassos recursos de muitas famílias, inclusive beneficiárias do Bolsa Família. O apelo comercial do enriquecimento fácil por meio dessas apostas é tentador, especialmente para aqueles em situação financeira frágil.
Uma pesquisa da Educa Insights, solicitada por instituições privadas, revelou que 35% dos interessados em cursar o ensino superior em 2024 desistiram de começar devido aos gastos com apostas online. Outro estudo, realizado pelo Banco Central, apontou que beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em bets via Pix apenas no mês de agosto. Dos 20 milhões de beneficiários, 5 milhões fizeram apostas no período, com uma mediana de R$ 100 por pessoa.
Enchentes, incêndios, desastres climáticos, drogas e apostas promovem dependências. E dependências são incompatíveis com a dignidade. Dignidade não se alinha à vulnerabilidade. Vulnerabilidade impede a autonomia, e a falta de autonomia leva à privação.
Robson Melo é Presidente da FUNDAES, a Federação do Terceiro Setor Capixaba