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domingo, 28 abril, 2024

O jeito capixaba de ser

A identidade capixaba é multifacetada. Não se parece com a de nenhum outro estado, pois o Espírito Santo teve uma formação étnica bem diferente dos outros

Por Ana Lúcia Ayub

Falar da identidade capixaba é algo que os próprios capixabas não têm tradição de fazer. Sua identidade, por sinal, tem uma história bem singular. E multifacetada. Impossível defini-la num único conceito ou numa só imagem. Não se parece com a de nenhum outro Estado brasileiro, pois o Espírito Santo teve uma formação étnica muito diferente dos outros.

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Nas origens dessa formação estão os índios – em grande quantidade no Estado – e os portugueses. Depois, os africanos. Após a proibição do tráfico de escravos no Brasil, a partir de 1850, veio a imigração europeia para suprir as necessidades da lavoura cafeeira do Estado. Enquanto São Paulo recebia uma grande quantidade de italianos, no Espírito Santo os imigrantes vieram de várias origens: alemães, suíços, luxemburgueses, tiroleses, austríacos, belgas, italianos, holandeses, gregos, espanhóis, sírios e libaneses.

E pouca gente sabe, mas até os americanos aportaram por aqui. Foi em 1867, quando 400 lavradores provenientes do sul dos EUA, se estabeleceram em Linhares, Baixo Guandu e no rio Doce. O motivo da imigração foi a Guerra de Secessão, na qual os sulistas derrotados ficaram sem escravos e terras. Alguns se estabeleceram definitivamente no norte do Espírito Santo, mas a maior parte deixou o rio Doce, indo para São Paulo, onde vivia a maioria dos imigrantes.

Legado do povo capixaba

Por influência de sua formação étnica, histórica e econômica diversificada, este pequeno território do sudeste brasileiro mantém até hoje hábitos e marcas deixados pela mistura de etnias, manifestando-se em muitos setores da vida capixaba. Os índios contribuíram com palavras como “capixaba” (que, em tupi, significa “pequena roça de milho”), que designa as pessoas nascidas no Espírito Santo. Os africanos deixaram como legado danças e cantigas populares, como o congo e o ticumbi. Deles, veio também a devoção a São Benedito.

No Espírito Santo, o capixaba diversificou-se na maneira de ser, de acordo com a região que ocupou. O do Sul lembra os fluminenses e se identifica com os cariocas. O do Norte é meio parecido com os baianos; o capixaba da montanha é mais reservado, assim como os mineiros. O capixaba litorâneo, conhecido como “maratimba”, é mais sossegadão. Ele é fruto da miscigenação entre índios e portugueses. Mas, mesmo que algumas pessoas insistam em falar que falta identidade ao povo capixaba, ele tem, sim, suas características próprias e uma forma específica de falar, segundo especialistas e historiadores. O problema é que a maioria das pessoas pensa apenas no sotaque quando se refere a identidade. “A identidade do Espírito Santo é como um mosaico. São várias pedrinhas para compor um todo. Nós não temos uma unidade muito aparente, identificável à primeira vista.

Mas ela existe. Mesmo que o capixaba não tenha o sotaque tão evidente como o chiado do carioca ou o r puxado do paulista, ele existe. É que as pessoas não têm técnicas para perceber essas diferenças”, afirma o presidente da Academia Espírito-santense de Letras, Francisco Aurélio Ribeiro.

De acordo com ele, só recentemente é que foi criado o curso de Mestrado em Linguística no Espírito Santo, no qual um grupo da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) está fazendo o mapeamento linguístico do Estado. No estudo, eles constataram que existe o falar capixaba, um dialeto próprio. O Núcleo de Pesquisas em Linguística do Espírito Santo (Nuples) já conseguiu identificar alguns vocábulos como “taruíra”, “gastura” e “pocar”, tão característicos do capixaba. Nas gravações realizadas pelos alunos, também foi percebido o uso do “ei” em lugar do tradicional “oi”. Tem até uma interjeição típica capixaba, o “iá”! Por exemplo, ao encontrar uma pessoa que não vê há algum tempo, o capixaba diz: “Iá, olha fulana! Há quanto tempo não nos víamos!”.

Identidade: conjunto de traços que se reflete na cultura

Mas, afinal, o que caracteriza a identidade de um povo? “A identidade é marcada por um conjunto de traços que se reflete na cultura de uma comunidade, entre eles a linguagem, a culinária e as manifestações folclóricas. É um conjunto de representações simbólicas que são específicas de uma cultura, mas que não são absolutas. São fluidas, porque mudam com o tempo e com a história”, afirma Aurélio Ribeiro.

Sobre as mudanças que ocorrem com o tempo, pesquisas indicam que a formação econômica do Espírito Santo foi mais lenta do que a dos seus vizinhos. O território capixaba – ficou isolado e foi muito pouco habitado até o século XIX. Inicialmente, a cultura indígena predominava, mas quase desapareceu com a ocupação portuguesa. No século XVII, o Estado foi praticamente abandonado após a descoberta de ouro no interior do que então ainda era seu território, e que foi desmembrado para a criação da Capitania Real das Minas Gerais, por ordem de Portugal. No século XVIII, no período áureo da mineração, proibiu-se a abertura de estradas no ES. Só em meados do século XIX o Espírito Santo foi “desbloqueado” para o escoamento dos produtos mineiros e da cultura do café, começando a sair da letargia em que se encontrava. Mas as outras capitais do Sudeste já estavam muito mais desenvolvidas. Além disso, como explica o historiador Gabriel Bittencourt, as fronteiras do Espírito Santo foram invadidas, como em São Mateus, que já sofreu disputa territorial com a Bahia, que ocupou a região por meio século, e em Nova Venécia, Colatina e Conceição da Barra, que sofreram disputas com Minas

“Tudo isso gera uma identidade confusa para o Espírito Santo. Durante três séculos, é influenciada pelos indígenas. Depois, parte para a presença dos africanos, e, sobretudo dos imigrantes europeus, mas imigrantes de várias origens. Isso tudo vai se miscigenar e a identidade capixaba vai variar extremamente de tempos em tempos, de acordo com a economia predominante de uma determinada época”, explica Bittencourt.

Identidade capixaba é resultado de etnias diversificadas

Sobre a identidade capixaba, o historiador Luiz Guilherme Santos Neves resume. “Não existe um elemento único capaz de assinalar a identidade do capixaba, sobretudo a partir de um ícone cultural ou linguístico ou territorial ou qualquer outro que seja. Somos o resultado de um encontro de etnias diversificadas, num espaço geográfico definido. Talvez aí o componente territorial pudesse ser considerado como fator de interligação dessa conjunção étnica”.

Para a jornalista Maira Coelho Silva, diretora da M&M Comunicação, que mora em Brasília desde 1991, não falta identidade ao capixaba. “Acredito que esta identidade ainda não conseguiu ser rotulada. É verdade que não somos reconhecidos. Mas, talvez porque nosso marketing da regionalização não tenha sido tão forte como de outros centros. Os sotaques dos paulistas, cariocas, baianos sempre são ressaltados com distinção. Assim, acho que é mais falta de consciência (conhecimento) que de sotaque. Não conseguimos massificar, como zeram algumas regiões”, diz ela.

Folclore regional, música nacional

O jeito capixaba de ser
As manifestações folclóricas e culturais são regionalizadas no Estado – Foto: Divulgação/Convento da Penha

As manifestações folclóricas e culturais são regionalizadas no Estado. Em São Mateus e Conceição da Barra, predominam as manifestações influenciadas pelos africanos, como o ticumbi, o jongo e reis de boi. Domingos Martins guarda os traços da colonização alemã. Santa Teresa concentra as tradições dos imigrantes italianos. Muqui é conhecido pelos encontros de folias de reis e pelas manifestações do boi pintadinho. Mas o congo é uma das maiores manifestações folclóricas do Estado, com predomínio na região metropolitana. De origem africana, se concentra nos municípios de Cariacica, Serra e Barra do Jucu.

“A vida musical capixaba é muito rica. Tem muita personalidade e mistura muitas influências, mas também influencia outros Estados. O movimento de resgate do congo, que ocorreu a partir da Lei Rubem Braga, permitiu o sucesso de muitos grupos, como a Banda Casaca e o Manimal”, afirma Luiz Paulo Vellozo Lucas. O deputado federal é capixaba, mas viveu no Rio de Janeiro e em Brasília por alguns anos. De volta ao Estado, foi eleito prefeito por duas gestões: de 1996 a 2004. Sempre teve uma forte ligação com a música e à frente da Prefeitura de Vitória, tentou valorizar a cultura local, segundo ele. Músico amador, apaixonado por samba e choro, é presença assídua nas rodas de samba da cidade.

“Tivemos pessoas importantes no movimento da bossa-nova que eram naturais daqui, mas como o Rio é a capital cultural do Brasil e Vitória é muito próximo, as pessoas talentosas vão fazer carreira lá. O Espírito Santo e o Rio têm uma conexão musical muito forte. Roberto Carlos, Maísa, Altemar Dutra, no período anterior à bossa-nova, Nara Leão, Roberto Menescal (um dos fundadores do movimento da bossa-nova) e Elisa Lucinda são alguns nomes de artistas consagrados”, explica ele.

Boom econômico atrai novos emigrantes

Além da miscigenação de etnias, a partir da década de 60 o Espírito Santo inicia o seu processo de industrialização e a Grande Vitória recebe um grande número de emigrantes de outros estados e do interior capixaba. Essa mistura de fluminenses, mineiros, paulistas e baianos – que trouxeram particularidades de suas culturas – ajuda a formar o chamado mosaico capixaba. “A maioria da população capixaba que reside no Estado ou não é capixaba ou não é filha de capixaba atualmente. E isso acaba influenciando no próprio conhecimento do Estado. Por isso é que as pessoas dizem que não veem identidade. Mas é porque elas desconhecem a história do Estado”, afirma o escritor Francisco Aurélio.

Segundo o deputado Luiz Paulo Vellozo Lucas, 51% dos moradores da Grande Vitória não nasceram no Espírito Santo. São provenientes de outros Estados, como confirma o IBGE, o que pode explicar novas modificações sofridas pela cultura capixaba. Atualmente, investimentos na indústria do petróleo e no setor minero-siderúrgico estão elevando o Espírito Santo a um novo patamar de desenvolvimento. Uma outra onda de migração está ocorrendo no Estado, em busca das oportunidades geradas. “Vitória, hoje, é o centro dinâmico que polariza o norte do Rio de Janeiro, o leste de Minas e o sul da Bahia, com uma população de 1,6 milhões de habitantes. Com a descoberta do petróleo, serviços mais sofisticados vão migrar totalmente para a Grande Vitória, mais do que quando começou a exploração da Bacia de Campos, em Macaé”, afirma ele.

Capixaba sente orgulho da terra

O novo fenômeno pode acarretar mais mudanças na identidade do capixaba. Entretanto, segundo os especialistas, ainda é cedo para analisar se ele vai se miscigenar novamente e sofrer novas mudanças sociais, econômicas e antropológicas em sua postura. Mas, pelo visto, as mudanças econômicas têm aumentado a autoestima do capixaba, deixando-o mais orgulhoso de sua própria terra. É o que analisa o empresário Octacílio Coser Filho, do Grupo Coimex.

“Após um desgaste e um esgarçamento da moral nos governos do Espírito Santo por 12 anos, eu acho que agora o capixaba está começando a ter orgulho do seu Estado. Na minha visão, se os governantes estaduais e municipais trabalharem bem, nos próximos 20 anos nós seremos uma Suíça brasileira. Só tem que tomar cuidado para não deixar a qualidade cair. Culturalmente, essa diversificação e esse boom econômico são importantes. Esse processo vai ser rico para todo mundo, inclusive para a moqueca, a torta capixaba e a panela de barro, que serão mais conhecidas. No momento que se cria um novo ciclo, com pessoas e culturas diversificadas, a nossa cultura também é disseminada. É uma troca”, conclui ele.

Culinária e panela de barro

fabricação artesanal de panelas de barro em Goiabeiras Velha Marcio Vianna_ Iphan
A tradicional panela de barro é confeccionada através de uma técnica popular que veio para o Espírito Santo há mais de 400 anos – Foto: Marcio Vianna/Iphan

Entre os pratos típicos mais famosos do Espírito Santo estão a torta e a moqueca capixaba. Famosas internacionalmente, já fazem parte do cardápio de restaurantes de São Paulo e Nova Iorque. Um dos segredos da moqueca capixaba é a panela em que ela é preparada. A tradicional panela de barro é confeccionada através de uma técnica popular que veio para o Espírito Santo há mais de 400 anos. O segredo desta arte foi passado de geração em geração e perdura até hoje nas mãos de mulheres da Associação das Paneleiras de Goiabeiras, que mantêm acesa esta expressão cultural tipicamente capixaba.

Expressões típicas dos capixabas

  • Fala que a bola vai “pocar” em vez de estourar;
  • Quando se espanta, fala “iá”;
  • Fala “pocar fora” quando vai embora;
  • Quando sente agonia, diz que sente “gastura”;
  • Quando se estressa, diz que está “injuriado”;
  • Diz que “deu tilt” quando as coisas estragam;
  • Capixaba fala “pão de sal” para se referir ao pão francês;
  • Acha “sem doce” os alimentos sem açúcar;
  • Capixaba não acha sem-graça, ele acha “palha”;

A matéria acima é uma republicação de edições anteriores de ES Brasil. Fatos, comentários e opiniões contidos no texto se referem à época em que a matéria foi escrita.

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