26 C
Vitória
sexta-feira, 17 DE janeiro DE 2025

Será que vivemos tempos tão difíceis?

Apesar de todos os avanços, vivemos tempos maravilhosos? Claro que não! Somos tão estúpidos que em centenas de milhares de anos ainda não aprendemos que a colaboração pode nos salvar

Por Cláudio Rabelo

Há mais informação circulando do que a estrutura nervosa humana é capaz de suportar. São microcápsulas de dopamina a serviço do mercado tentando conquistar nossas atenções. Memes, tragédias, recortes de filmes, situações nostálgicas, comediantes de Singapura, músicos da Sumatra, políticos dançantes da Nova Zelândia. Fórmulas de lançamento, gurus da prosperidade, mentores da riqueza, cabras alucinadas, casais inusitados, barrigas de fora, bundas de todas as formas, com e sem filtros. Na ordem dos discursos o que resta é a verdade insidiosamente doce dos algoritmos, que segregam, recortam, selecionam o que devemos assistir.

Tempos difíceis? Temos a insônia, as epidemias de depressão, agorafobia, ansiedade, terror noturno, burnout, além dos diagnósticos tardios de autismo em diferentes níveis e TDAH. Temos os haters, as fake news, os vícios em bets, games e tamagoshis. A polarização política: o inferno são os outros. Se nossa era fosse um programa de televisão estaríamos tentados a perguntar: “que Xou da Xuxa é esse?”

Será que vivemos tempos tão difíceis? Só porque os adultos gritam uns com os outros por causa de assentos nos aviões, ou digladiam por qualquer coisa, desde o desentendimento em razão dos latidos de cães, passando pelas dores das traições ou o resultado da partida do futebol? Vivemos tempos difíceis porque os empregos estão ameaçados pela CNPJotização de um lado e a inteligência artificial do outro? Quem precisa de emprego quando se tem essa vista da natureza, não é? Que natureza? Destruímos o ecossistema, quase não existe mais espaço para o descarte de lixo no mundo, o ar está insustentável e as catástrofes climáticas nos fazem viver em distopias materializadas.

- Publicidade -

Tempos difíceis? Temos uma farmácia inaugurando em cada esquina, o que nos mostra como a indústria da doença tem prevalecido sobre a saúde. Sobre a saúde mental, ninguém mais tem tempo para pensar. Sempre tem uma notificação nova para nos interromper do ócio criativo. Sou professor universitário nesses “tempos difíceis”. É impossível concorrer pela atenção dos estudantes com a sedução das notificações, sejam elas da Alexa, do Tiktok, e-mail, Whatsapp, ou um SMS. Quem vai ficar olhando para uma aula enquanto temos dopamina ilimitada na palma das mãos? Não tem mesmo como concorrer com isso! E se alguém estiver dependendo de sua atenção imediata? E você estiver offline? E se você visualizar sem responder e isso representar uma ofensa capaz de valer uma amizade?

Agora falando sério. São tempos difíceis? Temos saúde, rede de esgoto, educação e segurança públicas. Há alguns séculos nem a Rainha da Inglaterra sabia o que era um vaso sanitário limpo, ou um prato de comida lavado com Limpol. Imagine como era complicada a vida, antes dos sapiens dominarem o fogo. Temos assistentes sociais, ruas asfaltadas, supermercados, pracinhas arborizadas, lanchonetes gourmet, psicólogos e academias com personal. Existe o corpo de bombeiros, os pontos de energia elétrica e o acesso às telecomunicações. Podemos receber nossos objetos de desejo na porta de casa. Há alguns anos nem existia no Brasil a palavra “delivery”. Além disso, nunca a expectativa de vida foi tão alta. Também temos vacinas, antibióticos e anestesias. Nos deslocamos com veículos dos mais diversos, das bicicletas elétricas aos metrôs. Nossos casamentos não são mais arranjados ainda na infância e podemos escolher nossas amizades, professar nossas religiões e até mesmo seguir carreiras distintas de nossos ancestrais.

LEIA MAIS
A controversa austeridade fiscal Argentina A controversa austeridade fiscal Argentina - A Argentina enfrenta sérias dificuldades para fortalecer suas reservas internacionais, o que prejudica sua capacidade de atrair investimentos estrangeiros
Tendências globais de consumo e o futuro do agronegócio brasileiro Tendências globais de consumo e o futuro do agronegócio brasileiro - Segundo pesquisa da Euromonitor, há cinco tendências globais de consumo para 2025 que também podem transformar o setor do agronegócio

Apesar de todos os avanços, vivemos tempos maravilhosos? Claro que não! Somos tão estúpidos que em centenas de milhares de anos ainda não aprendemos que a colaboração pode nos salvar. Continuamos competindo como os neandertais. Mas são os piores momentos da história? Em primeiro lugar, temos que admitir que a história não é linear. Ela apenas nos foi contada na perspectiva dos vencedores.

Cada país é um espaçotempo, assim como temos muitos Brasis dentro do Brasil. Veja o que está acontecendo entre a Ucrânia e a Rússia ou Israel, Palestina e Síria. Veja a crise na Argentina e as questões no Congo e em Angola. Qual é o espaçotempo que separa a Favela da Rocinha da orla de Copacabana?

Na sexta-feira à noite experimentei uma catarse. As crianças dividiam seus despreocupados e lúdicos espaçostempos na pracinha com alguns moradores de rua. Um idoso dormia, independentemente do barulho, como se a presença das crianças pudesse representar uma segurança capaz de velar seu sono. Veio um nó na garganta. Uma vontade repentina de chorar. Dois homens mais jovens perguntaram ao senhor se poderiam dar alguns goles na cachaça que repousava ao lado de sua cama improvisada. A solidariedade de quem não tem nada. Qual história tem ali? Abandono parental, doença mental, endividamento ou violência? Não tem como a história pessoal competir com o estereótipo, com o julgamento moral de uma sociedade acostumada a enxergar a realidade com o auxílio de filtros em vez de lentes. Os filtros são como as maquiagens, que tornam mais palatáveis os sentidos do real. O suco de laranja artificial parece mais bonito do que aquele feito com o sumo da fruta. Já as lentes, estão quebradas há um bom tempo. São elas que nos fariam enxergar melhor. Lentes nos fazem ver para além das sombras projetadas na caverna de Platão. Sobre nossas lentes, colocaram véus. São as fake news, as frases de efeito, os clichês e a desinformação.

O tempo não é uma medida cronológica. O que são tempos difíceis? Difíceis para um filho de classe média alta sofrendo com uma depressão severa em Nova Iorque? Um órfão palestino que não sabe o que é a adolescência? Uma professora de São Paulo que está sendo ameaçada por um estudante indignado com seu método? Um bebê sendo abandonado em um matagal em uma estrada de Minas Gerais? Ou talvez um empreendedor, Enzo, revoltado com a política, enquanto lê as notícias no seu Mac Book Pro. Provavelmente ele pode estar se perguntando: que tempos malucos são esses que estamos vivendo agora?

Cláudio Rabelo é professor de Publicidade e Propaganda na Ufes, doutor em educação e autor de “A estratégia do cafezinho”, best seller publicado pela Alta Books em 2023

Mais Artigos

RÁDIO ES BRASIL

Continua após publicidade

Fique por dentro

ECONOMIA

Vida Capixaba