26 C
Vitória
quinta-feira, 28 março, 2024

Fabiano Contarato. “Ninguém está e ninguém vai ficar preso no Brasil por crime de trânsito com essa lei”

Fabiano Contarato. “Ninguém está e ninguém vai ficar preso no Brasil por crime de trânsito com essa lei”O delegado de Polícia Civil titular da Delegacia de Delitos de Trânsito, Fabiano Contarato, diz viver um luto todos os dias. Numa rotina de inquéritos e convivência muito próxima com as famílias que perdem seus entes queridos em crimes de trânsito muitas vezes ocasionados por imprudência e, pior, direção alcoólica, Fabiano lida com a vida e a morte. Nesta entrevista, o delegado fala sobre o Código de Trânsito Brasileiro, que considera elitista, patrimonialista e que banaliza a vida humana, e sobre sua “missão” como embaixador da consciência e das boas práticas no trânsito.

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), em todo o mundo, são 1,3 milhões de mortes e outros milhões de pessoas feridas em acidentes de trânsito. Como podemos mudar esses números?
A gente pode mudar esses números a partir do momento em que o Poder Púbico se fizer mais presente. A partir do momento que você estabelecer tolerância zero para o álcool, presunção de culpa, penalidade mais rigorosa, incluir na grade escolar educação para o trânsito, colocar polícia na rua para fiscalizar e cobrar do Centro de Formação de Condutores (CFC) uma formação de verdade. Há culpa de várias instituições. É cômodo falar que o motorista é imprudente, mas ele é imprudente porque vê uma lei falha, facilidade para obter o CNH, falha na educação para o trânsito e também na fiscalização.

- Continua após a publicidade -

Como está a aplicabilidade da Lei Seca, depois de anos já sancionada? Crimes de trânsito têm sido evitados por causa dela?
Infelizmente, a lei seca, de seca não tem nada. Ela está desidratada, porque o legislador fez uma lei para arrecadação de multa. No aspecto criminal, que é onde teria que haver mais rigor, não tem. A lei seca, do jeito que está hoje, contribui para o aumento de criminalidade e não para a sensação de impunidade, mas para a certeza de impunidade. Por que ninguém está preso hoje por crime de trânsito? O Código de Trânsito Brasileiro é fruto de uma sociedade elitista. O legislador legista em causa própria. É o pobre, na maioria das vezes, que entra nas estatísticas de quase 60 mil pessoas que estão morrendo por ano no Brasil, vítimas de acidentes de trânsito. Sem falar daqueles que ficam mutilados, que são quase 400 mil pessoas. E isso vira um problema de saúde pública. E quem está preso no Brasil por crime de trânsito? Ninguém está preso no Brasil por crime de trânsito. Ninguém está e ninguém vai ficar preso com essa lei. O que esperar de um Congresso, quando o próprio legislador se recusa a fazer o teste do bafômetro? O que eu espero da Câmara dos Deputados se um deputado se recusa fazer o teste do bafômetro? Se prefeitos se recusam, se advogados se recusam, se coronéis se recusam?

Afinal, o bafômetro é ou não obrigatório?
Sim e eu vou explicar por que. A Constituição Federal fala, no Art. 5º, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”, ou seja, para que eu seja obrigado, tem que haver uma lei. Existe a lei? Existe, o Código de Trânsito Brasileiro, que é a Lei 9.503/97, que, no Art. 277, diz o seguinte: “todo condutor envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização será submetido ao teste”. O legislador utilizou o verbo ser com tamanha imperatividade porque é obrigatório. No parágrafo 3º desse artigo, ele diz o seguinte: “serão aplicadas penalidades e medidas administrativas a todo condutor que se recusar a se submeter ao teste”, ou seja, se há presunção de culpa, a tolerância é zero e a prova testemunhal tem valor. Mas isso é para fortalecer a indústria de multa a arrecadação. Agora, no aspecto criminal, não há tolerância zero, e se você se recusa a fazer o teste, não tem como a prova testemunhal olhar para você e mensurar a concentração de álcool por litro de sangue. Então, a pessoa recebe a penalidade administrativa, mas não recebe a criminal. Isso me dói. O Código de Trânsito é elitista.

E há perspectivas de o Código de Trânsito Brasileiro ser mudado?
Mandei várias propostas ao Congresso Nacional. Umas delas foi para corrigir as injustiças do Código, inserindo a tolerância zero e a presunção de culpa. A segurança do sistema viário é um direito coletivo. Mas, hoje, estou extremamente feliz, primeiro, porque a modificação da lei está na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, agregando a ela tolerância zero e presunção de culpa para quem se recusa e colocando penas mais duras para a pessoa alcoolizada que mata alguém no trânsito. Essas mortes têm que ser tratadas. Repito: ninguém está preso no Brasil por crime de trânsito. Cesta básica não é pena, não readapta ninguém. Mas vejo que há uma luz no fim do túnel.

Quais são as estatísticas de crimes de trânsito no Espírito Santo? Com relação ao tema, como estamos no cenário nacional?
Estamos chegando a mil pessoas mortas por ano. Só neste ano, foram 540 pessoas, apenas nos DMLs da Grande Vitória. O Espírito Santo ocupa o primeiro lugar nacional em mortes no trânsito. É uma vergonha, sendo o Espírito Santo um estado tão pequeno.

E por que estamos vivenciando isso?
Ausência de fiscalização. Em outros estados, a polícia está presente. Quando a polícia estiver presente, ela vai coibir tudo. Só que no Espírito Santo, temos três blitze por semana, e em horários e locais que todos sabem. Não funciona. O problema está na legislação, que garante a impunidade, mas também na fiscalização, que está sendo ineficiente. Com o lançamento do Plano Estadual de Segurança do Trânsito [lançado em 20 de setembro pelo Governo do Estado], 72 policiais vão para o Batalhão de Trânsito e serão feitas, no mínimo, seis blitze por noite. Aí a coisa vai funcionar. Estou feliz, porque estou vendo ações efetivas, e não só promessas. O compromisso é do Governo do Estado. As famílias não querem ver seus filhos como números, são histórias. Parece que estou remando contra a maré, numa problemática que é de todos. Thomas Hobbes tinha muita razão quando falava que “o homem é o lobo do homem”.

Entre 19 e 25 de setembro, foi realizada a Semana Nacional de Trânsito, com o tema “Década Mundial de Ações para a Segurança do Trânsito – 2011-2020: Juntos podemos salvar milhões de vidas”. Quais são as ações para esta década que objetivam mudar essa realidade?
A primeira delas é que já está na CCJ a modificação substancial da legislação. Ela já está para ser aprovada e tenho muita esperança. Além disso, o Governo do Espírito Santo acabou de assinar o repasse de verbas para a melhoria do sistema viário, na sinalização horizontal e vertical, além de introduzir na grade curricular conceitos de cidadania e trânsito nas escolas de ensino fundamental. Essas ações concretas são positivas. Estou feliz, apesar de todas as críticas. Com o Plano lançado pelo Governo do Estado, serão repassados mais de R$ 100 milhões. Com isso, já vai ter educação no trânsito nas escolas. É preciso investir na educação para o trânsito como algo sistematizado, seja como disciplina eletiva, seja na transversalidade do processo educacional, bem como intensificar a fiscalização, que hoje é deficiente. O motorista é imprudente porque há impunidade, porque não há fiscalização, não há presença do Estado. Se há uma lei mais rígida, fiscalização e processo educacional, a mudança comportamental vai vir. Além disso, outra razão para minha felicidade é que foi inaugurado um grupo de apoio psicológico a pessoas envolvidas em acidentes. É a humanização do Estado. O problema de trânsito é de todos nós, e há vários fatores que interagem entre si.

O caminho para salvar vidas no trânsito é a ação coletiva, como diz o tema da Semana?
Com certeza. Não tenho dúvida. Essa via é de mão dupla. De um lado, o Art. 144 da Constituição diz que segurança pública é um direito de todos e dever do Estado. O dever do Estado está sendo feito. De outro lado, está a sociedade civil. Não adianta falar para meu filho não dirigir alcoolizado, se eu dirijo alcoolizado, porque o discurso fica contraproducente. Este problema é interdisciplinar. O Estado tem que assumir sua culpa, mas a sociedade civil tem que ser agente transformador.

Faltam virtudes como gentileza e cordialidade no trânsito?
Vivemos uma crise ética. Não tenho dúvida. Conceitos de ética, moral, compaixão, cordialidade e educação foram banalizados.

Como o senhor definiria o comportamento do motorista brasileiro e, principalmente, capixaba ao trânsito? Que qualidades e defeitos o caracterizam?
Os defeitos são muitos. O motorista brasileiro, em especial o capixaba, é imprudente, pratica ação perigosa, como excesso de velocidade e ingestão de bebida alcoólica ou substância psicoativa, é negligente e avança o semáforo. Faltam a ele cordialidade e educação. As pessoas usam o carro como objeto de virilidade, como objeto de conquista, e, assim, não valorizam a vida humana. Com relação às qualidades, não as vejo. O que o motorista fizer não é mais do que a obrigação, que é cumprir as normas de trânsito.

Qual o perfil das pessoas que mais sofrem e causam acidentes de trânsito?
A maioria das pessoas que praticam imprudência no trânsito é de jovens, de 18 a 26 anos, mas tenho verificado a incidência alta de pessoas mais maduras, com 50, 60 anos de idade. As que mais sofrem são pobres. A grande massa de quem está morrendo ou ficando mutilada é pobre. O motorista está em vantagem patrimonial em relação ao atropelado. As vítimas são jovens, de todas as faixas etárias, mas principalmente pessoas no auge da produtividade econômica. Há, de um lado, um motorista imprudente, negligente, que bebe e banaliza a vida humana; do outro, as vítimas, as famílias que ficam sem seus filhos e são dilaceradas. A morte é só o núcleo de um problema que vai começar a ter um efeito cascata em toda aquela família. Por trás da morte real, há mortes simbólicas, porque a família fica desestruturada.

Quais são os resultados concretos de programas como o Madrugada Viva e outros de conscientização de motoristas?
Essas ações têm efeitos paralelos, porque elas por si só não mudam comportamento. Tem que ter esses programas, mas não como ponto central do processo educacional. O ponto central, como prevê o Código, é a educação para o trânsito, a ser promovida em escolas de nível fundamental, médio e superior.

Hoje, vemos cada vez mais acidentes entre motociclistas. Para além de um problema de trânsito, temos um problema de saúde pública. Que ações podem ser empreendidas para esses condutores de modo a evitar que matem e morram?
A gente tem uma visão muito imediatista de pensar que o motociclista é imprudente. Não tenho dúvida de que seja, só que temos que ser inteligentes para fazer uma análise mais crítica e buscar o porquê dele agir assim. E há o vínculo empregatício. O motociclista aceita o que o patrão determina por acreditar em sua perícia, prudência e habilidade em conduzir a motocicleta. Ele aceita violar as leis de trânsito para manter a subsistência da família. Na maioria dos inquéritos com vítima fatal sendo o motociclista, a culpa é dele mesmo. Ele também é vítima, grande parte é responsável pela própria morte. Quero chamar a atenção também para o fato de que o Poder Público não preparou o sistema viário para absorver esse tipo de veículo nessa quantidade que temos hoje e, além disso, a formação de condutor é ineficiente, todos sabem. A visão é mais ampla. E que ação tem que ser feita? Volto ao processo educacional, fiscalização direcionada e formação dos condutores, que tem que mudar urgente, porque do jeito que está vamos continuar sepultando.

O senhor, como delegado de crimes de trânsito, enxerga soluções para os problemas de violência no trânsito?
Enxergo sim, porque se não enxergasse não estaria aqui. Tenho esperança, tenho sonhos e hoje eles estão começando a se transformar em realidade.

E como ser humano, vê perspectivas de mudança dessa realidade?
Se as pessoas acreditassem em um ser superior, em Deus, se as pessoas olhassem as outras e enxergassem Deus nelas, elas respeitariam todo mundo e teriam zelo com sua integridade física, com seu espaço. Como ser humano, não gostaria de continuar afirmando o que Thomas Hobbes falava há tanto tempo: “o homem é lobo do homem”.

É seu sonho sair do “luto diário”, como o senhor mesmo diz?
É meu sonho. Meu sonho é abraçar essas mães. Meu sonho é poder falar que o Poder Público não só é burocrata, que é humano, que não está preocupado com arrecadação. Meu sonho é que o Estado fizesse uma grande chamada com os nomes das vítimas fatais de trânsito, como uma aula de cidadania e como forma de dizer que não se esqueceu delas. Se eu não tiver sonho, não tenho motivação. Eu vejo que o Poder Público tem que se humanizar. Eu tenho esse sonho de mudança. Queria muito que as pessoas exercitassem mais o amor, a compaixão, a caridade e a humildade, que considero é uma das maiores virtudes do ser humano, e entendessem que isso daqui é muito rápido, que hoje estou aqui, mas amanhã posso não estar. O que estou fazendo para ajudar meu semelhante? Somos apenas aqueles que passam. O corpo é transitório, vai-se. A alma é luz, é permanente.

Entre para nosso grupo do WhatsApp

Receba nossas últimas notícias em primeira mão.

Matérias relacionadas

Continua após a publicidade

EDIÇÃO DIGITAL

Edição 220

RÁDIO ES BRASIL

Continua após publicidade

Vida Capixaba

- Continua após a publicidade -

Política e ECONOMIA