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segunda-feira, 22 abril, 2024

Será que o mundo enlouqueceu?

O doutor Jovino Araújo atua como médico desde 1979 e abriga vasta experiência no tratamento clínico de doenças mentais. Ele atende há décadas pacientes em situação de internamento ou com sintomas advindos das mais variadas patologias da mente

Por Marlon Max

O mundo parece ter enlouquecido. As angustias aumentaram, a sensação de solidão e isolamento também. Lidamos com espanto, mas sem duvidar de notícias de filhos que assassinam os pais a sangue frio ou de pessoas que matam a outra por uma quantia ínfima de dinheiro. A loucura, não é apenas uma tipificação do senso-comum, mas uma condição
psíquica com muitas nuances.

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O escritor e médico psiquiatra Augusto Cury define a loucura como comum à condição humana. “Todo homem tem sua loucura e toda loucura se manifesta de forma incomum”, descreve Cury. As doenças da alma, como são chamadas as patologias emocionais, empurra as pessoas para um vazio existencial cruel. Em muitos casos, tudo que o enfermo vê adiante é a impossibilidade de seguir com a dor inflama os sentimentos.

Mas como a ciência aborda a loucura e as patologias mais comuns desta era, como a depressão e ansiedade? Para além das complicações oriundas da pandemia que caminha para seu segundo ano seguido, aumentou o número de pessoas que fazem uso de medicamentos controlados, como antidepressivos, estabilizantes de humor ou indutores de sono. Dados do Conselho Federal de Farmácias apontam que quase 100 milhões de caixas de medicamentos controlados foram vendidos apenas em 2020. Os dados representam um crescimento de 17% na comparação com o ano de 2019.

Ouça esta entrevista em Podcast

O Brasil é considerado o país mais ansioso e estressado da América Latina. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), nos últimos dez anos o número de pessoas com depressão aumentou 18,4%, isso corresponde a 322 milhões de pessoas, ou 4,4% da população da Terra. No Brasil, 5,8% dos habitantes – a maior taxa do continente latino-americano – sofrem com o problema.

Especialistas afirmam que o aumento no uso ou a dependência de medicamentos para o controle da ansiedade também podem estar ligados ao desenvolvimento socioeconômico de cada região do país. Além disso, o desemprego, a incidência de mortes pela Covid-19 e o confinamento na quarentena aumentaram a da ansiedade na população.

Para o médico psicanalista Doutor Jovino Araújo, não existem doenças necessariamente novas, mas categorizações distintas para fenômenos com maior ou menor incidência.
“De uma maneira geral, não existem novas doenças, existem classificações novas para manifestações antigas. Obviamente que o aperfeiçoamento das relações humanas, implica na observação de que no trabalho ou chefias, podem ser tóxicas, no sentido de haver uma conceituação de assédio, onde o respeito humano é transgredido ou a capacidade humana de adaptação a carga de trabalho e demandas não correspondem exatamente as estruturas individuais ou do ambiente”, explica.

Para entender como a sociedade adentrou nessa era onde os medicamentos são rotineiros e a loucura é abordada como parte do cotidiano, ESBrasil conversou com o doutor Jovino Araújo que atua como médico desde 1979 e abriga vasta experiência no tratamento clínico de doenças mentais. Confira!

Confira a entrevista em vídeo 

A gente tem que abordar um tema que talvez seja um ponto de partida, que é definir o que é loucura para medicina?

É difícil a conceituação do que é saúde do que a é doença. Afinal de conta, a vida em si ela é imperfeita. Se a vida fosse perfeita, nenhum de nós adoecer ia nem morreria. Ou seja, a vida é um sistema em aberto que compõem a localidade com a imperfeição. Então a loucura faz parte dessa imperfeição como um adoecimento. A conceituação de adoecimento mental tem graduações onde a gente pode ter anormalidades e sentimentos um pouco desconfortáveis ou anormalidades muito intensas. A loucura estaria como que não ápice da decomposição da estrutura da individualidade onde há um conjunto de sintomas faz com que a pessoa se torne bastante disfuncional e, com o intenso grau de sofrimento, normalmente os loucos são aqueles que a gente considera na classificação como psicóticos.

Em casos como o que aconteceu no Espírito Santo, em Vila Velha, onde o filho matou os pais e depois tirou sua própria vida. Isso é um episódio de loucura?

Tanto homicídio como o suicídio podem acontecer fora do âmbito da loucura — por impulsos que tem muitas motivações, inclusive uma simples depressão. No caso em questão, você vê que há um componente de desestruturação muito intensa do jovem que estava envolvido e, obviamente, aqui há ideação de uma doença grave. Fica muito clara, sendo que a experiência da psiquiatria sugere que a loucura pode ter alucinações e delírios, que a gente chama de comandos.

Delírios de comando ou alucinações de comando… são comandos que tem a ver com espíritos ou comandos demoníacos, não necessariamente uma expressão espiritual, mais uma expressão de doença mental. Parece… eu não posso detalhar sobre o caso, porque preciso falar em tese, mas dá a entender que foi esse o caso. Essa ‘loucura’, são em geral, reversíveis ou são casos que já pertencem a personalidade da pessoa e aí é mais uma questão se tratar de forma paliativa. Ás vezes não existem recursos dentro da medicina para que esses sintomas sejam amenizados, atenuados ou o que desapareçam. Algumas das doenças no campo das psicoses são doenças crônicas.

A porcentagem de brasileiros que estão sendo diagnosticado com algum transtorno mental está crescendo, talvez em virtude da pandemia. O que fazer para frear essa situação?

A pandemia é uma crise! É uma crise mundial que é espelhada de diversas maneiras e que afeta as pessoas de várias formas, tanto do próprio medo da doença em si, da contaminação, medo da morte ou da hospitalização e também indiretamente dos medos relacionados às consequências da pandemia: o desemprego, a perda financeira a alteração da rotina das pessoas… o ator da crise sempre sofre com um aumento da ansiedade.

Significa que praticamente todas as pessoas estão afetadas com um aumento da ansiedade. Também significa a exposição dos defeitos humanos, ou seja, todos nós estamos sujeitos, durante a pandemia, a expressar mais defeitos do que virtudes. Isso pressupõe uma possibilidade de adoecimento? É claro! A pandemia quebrou a rotina, impôs isolamento, e por isso pode gerar um aumento de sintomas, sendo que a longevidade da pandemia significa o surgimento de mais pessoas que precisam de ajuda médica. Quanto ao transtorno de ansiedade generalizado, que é uma patologia, e há uma diferença grande dessas duas coisas: ansiedade simples é um sentimento humano universal e necessário, porque nos move e nos protegem de alguma maneira. E também existem diversas estruturas de ansiedade que são patológicas e que necessitam de um médico, como o transtorno de ansiedade generalizada (TAG), o transtorno de pânico ou transtorno obsessivo-compulsivo. Ansiedade alta, durante um período maior, também é geradora de sintomas de depressão.

O consumismo exacerbado aliado ao imediatismo das redes sociais pode levar à saúde mental das pessoas a um colapso?

É claro que o mundo sempre esteve em transformação desde sempre e talvez para sempre. As aquisições tecnológicas das últimas décadas impõem uma transformação um pouco mais rápida, o que dificulta as adaptações. Todos nós precisamos de nos adaptar a sistemas de comunicação de interação, o que são muito diferentes do que eram há muito pouco tempo atrás. Ainda não adquirimos aquilo que seria o ideal para uma adaptação ou adequação saudável.

De qualquer maneira o mundo e as transformações são uma oportunidade para que o ser humano realmente adquira aquilo que a gente possa chamar de desenvolvimento humano. A integração e a associação entre as pessoas de forma mais igualitária, a quebra das discriminações, dos racismos e coisas que podem ser historicamente inadequadas. É claro que as distorções têm a ver com o fundamentalismo onde há uma grande agressividade para se defender ideias que são próprias e descordando da ideia do outro.

Por outro lado, nós temos a indiferença de um ser humano, representado muito pelo consumismo, que é uma forma de indiferença… como se houvesse um valor naquilo que é material. A crise, apesar de todo sofrimento, é uma chance óbvia de adquirimos uma adaptação que seja mais humana. Mas muitas pessoas estão em home office ou que estão precisando se adaptar a uma nova rotina dentro do ambiente de trabalho, às vezes, em jornada dupla e hora extra e acabam adoecendo por não conseguir fazer essa transição bem.

Será que o mundo enlouqueceu?
““O suicídio é uma morte evitável”, diz o doutor Jovino Araújo.

Explique a importância de tratar o paciente, mas também de mudar os hábitos e até o cenário?

O ambiente ele é formado pelo ser humano. Nós impactamos as estruturas sociais, as estruturas familiares, e o próprio meio ambiente. De qualquer maneira o ser humano pode ser abordado psicologicamente ou psiquiatricamente também para se estruturar para que essa adaptação seja saudável, ou seja, mesmo que o ambiente não mude, uma pessoa pode estar mais protegida e mais saudável se ela tiver mais fortalecida e internamente.

Ainda dentro dessa questão do trabalho… a síndrome de Burnout tem afetado as pessoas cada vez mais. O que é, e como se trata essa patologia?

De uma maneira geral, não existem novas doenças, existem classificações novas para manifestações antigas. Obviamente que o aperfeiçoamento das relações pessoais, das relações humanas, implica na observação de que, uma pessoa com seus pares no trabalho ou com suas chefias, podem ser também tóxicas, no sentido de haver uma conceituação de assédio, onde o respeito humano é transgredido ou a capacidade humana de adaptação a carga de trabalho e demandas não correspondem exatamente as estruturas individuais ou do ambiente.

Isso pode desgastar inicialmente alguém. E exatamente isso configura uma falta de adequação que, progressivamente, pode gerar sintomas psiquiátricos caracteristicamente com ansiedade alta, depressão ou outras manifestações que podem ter a ver com a o indivíduo em si, em suas heranças pessoais.

Em pleno 2021, no Brasil, ainda parece ser tabu falar abertamente de depressão ou suicídio. Como a sociedade pode evoluir nesse sentido?

Não é só no Brasil, em todo mundo é desta forma, mas é algo que precisa mudar e em alguns lugares já está mudando. Existe até o ditado que ‘não se fala de corda em casa de enforcado’, isso representa exatamente esse tabu que é o suicídio. É uma morte evita. É evitável no sentido de que ela é resultado, na maioria das vezes, de um adoecimento psíquico.

Parte do suicídio acontece no curso de doenças psiquiátricas, e é muito raro acontecer um suicídio sem que a pessoa seja um doente psiquiátrico. Por isso o suicídio é uma morte evitável. Em alguns lugares do mundo as taxas de suicídios estão caindo, em outros lugares essa taxa de suicídio está subindo. O Brasil é um desses lugares, mas sabemos que a abordagem correta dos riscos de suicídio, pode evita-lo.
Entre essas abordagens está: falar de suicídios com as pessoas que estão sofrendo, falar com os pacientes psiquiátricos, com os familiares do paciente e saber dimensionar os riscos
em relação ao suicídio.

Sabemos que isso incluem acesso aos meios de suicídio. Então a gente vê que tem meios de prevenção do suicídio, mas o conversar, falar, o participar das campanhas de suicídio, do ‘setembro amarelo’, que é uma forma de divulgar de sobre isso e dar acesso às pessoas através da assistência particular, mas principalmente, vivendo num país pobre, falar do acesso à assistência de saúde mental no serviço público e de clínicas especializadas que possam acolher pessoas em sofrimento e fazendo com que a taxa de suicídios diminua.
Sabemos que de aproximadamente 10 ou 15 anos para cá a taxa de suicídio no Brasil aumentou algo próximo de 50%, isso é muito! Então a gente, considerando que o suicídio é uma morte evitável, preciso que haja uma política pública de abordagem deste tema para que nós possamos reverter isso. É muito triste a gente permitir que uma morte evitável aconteça.

Culturalmente, o brasileiro gosta de beber. Mas uma pessoa que já está com quadro de depressão, o álcool pode agravar essa situação clínica?

Obviamente que o uso de substâncias psicoativas é inerente ao ser humano desde sempre. Mas nos centros atuais, o álcool é o maior problema de saúde pública do mundo. Só para caracterizar o nosso país, que é um país com pouco mais de 200 milhões de habitantes, nós temos um milhão de pontos de venda de álcool no Brasil. Ou seja, o álcool não é proibido, é uma droga lícita e inclusive estimulada por propagandas, paradoxalmente. Isso faz com que o seu uso seja muito extensivo. Na minha consideração pessoal, tanto uso do álcool ou uso de outras substâncias faz parte daquilo que eu chamarei de uma automedicação. O álcool e outras drogas dão em algumas pessoas uma sensação agradável de conforto momentâneo, mas obviamente que tanto quanto as outras drogas, não são bons remédios.

Como é possível ajudar uma pessoa que está passando por problemas psicológicos, como depressão por exemplo?

Escutar! Parece que em tese seria algo muito simples, mas é meio raro termos a capacidade de simplesmente escutar alguém que precisa falar. Além disso, incentivar alguém a falar já é uma grande ajuda. Fora isso… pegar pela mão e sugerir algum atendimento psicológico ou psiquiátrico, porque às vezes a pessoa considera que o sofrimento emocional é uma condenação da qual ela não possa se livrar. Não é a nossa vida em si, mas o sofrimento faz parte da vida e para o sofrimento tem solução. Nós podemos ter recursos que nos façam sermos felizes e com certeza o nosso círculo ambiental de pessoas é fundamental. Nós temos que valorizar a vida, a nossa e a vida do outro, e estarmos atentos e nos oferecer como ouvidos que significa acolher o outro.

Qual a patologia que o doutor mais mas atende?

Nesses últimos anos — eu não sei se é muito diferente dos demais, apesar de haver uma intensidade maior e uma frequência maior, mas a depressão, que é chamado mal do século 21, mas era também o mal do século 20 e talvez fosse também do século 19, do século 18 e do século 17. No curso da vida de qualquer um de nós, há possibilidade de haver um percurso de uma depressão leve moderada ou grave. Algo em torno de 25% de todas as pessoas do mundo já passaram ou vão passar por depressão. O “antivírus” para isso e obviamente muitas coisas evoluíram.

É sobre a internação, em que casos ela é uma opção e de que forma pode beneficiar as pessoas?

Existe uma questão legal que pressupõe o internamento a partir de critérios definidos em leis. Esses critérios definidos foram sugeridos pela experiência clínica. É um consenso mundial o internamento psiquiátrico, e é sugerido para preservar a integridade física da pessoa ou de terceiros, ou seja, até o risco de suicídio.

No caso de dependência química, o internamento é para interrupção de um de um abuso e também para prevenir as manifestações de abstinência e isso implica em um internamento que pode ser bastante curta, apesar de no caso da dependência química a internamente seja apenas um recurso provisório.

Até o próprio conceito de que a dependência química, que é uma doença crônica e incurável, mesmo que a pessoa esteja abstinência, ela precisa desse acompanhamento, ou seja, o internamento então tem uma indicação. Também é preciso para
casos de surtos psicóticos.

Qual é o perfil da pessoa mais louca, na opinião do doutor?

Olha a ideia para mim, o pior paciente seria aquele doente do caráter. Aquele que ignora os sentimentos dos outros, aquele que não sente culpa, que ignora a regra ética e moral …é a ideia de que você pode fazer algo ou falar algo que provoca o sofrimento em alguém. Para mim o maior louco é aquele que não se importa de fazer outra pessoa sofrer. É exatamente esse o pior louco.

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