28.8 C
Vitória
terça-feira, 23 abril, 2024

Siga o protocolo

São protocolos que nos orientam sobre como agir em cada situação, deixando a nossa vida mais segura e previsível. Sem eles, ficamos perdidinhos

 Por Victor Mazzei 

 Dia de prova. Alunos tensos. O professor entrega as avaliações. Um estudante pergunta: “professor, posso fazer a prova a lápis?”. Segundos depois: “professor, quem acabar pode ir embora?”. Não demora muito e lá vem: “que dia é hoje mesmo?”. Em seguida: “tem que responder à caneta?”. Quando imaginamos que acabou, alguém solta: “depois da prova vai ter alguma coisa importante?”.

- Continua após a publicidade -

Não há nada de errado em se fazer esses questionamentos. O que realmente incomoda é que, em toda avaliação, independente do nível, isso acontece. E sabe por quê? Simples, são protocolos que nos orientam sobre como agir em cada situação, deixando a nossa vida mais segura e previsível. Sem eles, ficamos perdidinhos.

O fato que narrarei a seguir é verídico. Recentemente, fui convidado por um amigo para participar de uma confraria de vinho. Aprecio vinho, mas estou bem distante de ser um conhecedor. Encontro de enófilos é algo sempre repleto de protocolos e de rituais: há a maneira correta de se extrair a rolha; tem que dar aquela balançadinha na taça e enfiar o narigão perto do líquido a fim de sentir os aromas que notabilizam o terroir específico de um microclima (gastei agora, hein!). Faz parte do espetáculo. Para quem não é do métier parece presepada.  Ás vezes, é.

Mas vamos à minha experiência. Chegando lá, foram abertas seis garrafas, cada uma de um país diferente, tendo em comum que todas haviam sido elaboradas com a uva Merlot. Nas cinco primeiras amostras provadas, era um tal de “huum, taninos redondos, notas de caramelo, sabor complexo, aveludado, bastante frutado”. Tudo bem protocolar. E eu lá com a aquela cara de “sei, sei, taninos…” Mas o inusitado ainda estava por vir.

Chegou o momento de abrir o vinho que eu havia levado para a confraria. Era um uruguaio, de uma vinícola conceituada, porém já no momento da compra fui alertado pelo vendedor para abrir a garrafa só daqui a uns 10 anos.

– Como assim? – perguntei.

– É um vinho de guarda.

– Guarda? Só policial é que pode tomar esse vinho? – retruquei.

– O caixa é por ali, senhor. – educadamente, o vendedor virou as costas para mim para atender outro cliente.

Bom, retornando ao meu encontro. Chegou a hora de servir o meu vinho. Percebi que, ao contrário dos anteriores, parecia não estar agradando à maioria. Inclusive, alguns confrades CUSPIAM meu vinho em um balde de metal e, em seguida, faziam gargarejo com água com gás. Constrangido, perguntei ao senhor que estava ao meu lado:

– E aí, o que achou do meu vinhão uruguaio? Gostou?

Elegantemente e com um dos olhos semifechado como se estivesse me flertando, disse:

– Humm, taninos redondos, notas de caramelo, sabor complexo, aveludado, bastante frutado… e notas evidenciadas de estrebaria.

– Ah, sim… O que quer dizer notas de estrebaria? – questionei.

– Humm, digamos que é uma sensação e uma atmosfera que nos remetem ao ambiente rural. É como se estivéssemos fazendo um passeio guiado por um curral, com bovinos premiados que processam o alimento consumido e os transformam em fezes frescas e férteis. – protocolou o senhor.

– Como assim? – argumentei.

– Sinta as notas de ferradura, esterco bovino que alimenta os seres microscópios que habitam o terreno ao qual uma fazenda foi construída. – sofisticadamente proclamou.

Fiquei meio atordoado na hora.

– Você está insinuando que meu vinho tem gosto de bosta de boi?

– Meu caro, concentre-se nas papilas gustativas. Perceba como o sabor remete ao campo, carroça, ambiente agrário, estágio no Incaper… Use a imaginação, pense na mimosa mascando aquela grama viçosa e fresca, sendo filmada pela equipe do Globo Rural…

Inconformado com aquela observação e, principalmente, pelo fato de eu ter desembolsado mais de 100 reais naquela garrafa, desferi:

– Entendi, m**** de boi líquida servida em taça.

O ambiente ficou tenso. Silêncio total. A pessoa que havia me convidado ficou paralisada com o meu rompante nada protocolar. Ninguém se mexia. Cada participante olhando lateralmente para os demais, com o nariz enfiado em sua taça.  Assim ficamos por uns 5 minutos, até que outro participante decidiu dar uma segunda chance para o meu vinho:

– Queridos, percebam como o vinho abriu, atingiu o equilíbrio, evoluiu, melhorou muito. As notas de estrebaria se dissiparam e olha só… Huum, taninos redondos, notas de caramelo, sabor complexo, aveludado, bastante frutado… É como se 10 anos passassem voando na taça.

Ahá, o vendedor estava certo!!!

Os demais confrades também se aventuraram a retomar a degustação do meu vinho. A harmonia voltava ao encontro. Novamente, estavam se sentindo protocolarmente em casa. Como em uma orquestra exaustivamente ensaiada, diziam um após o outro:

– Huum, taninos redondos, notas de caramelo, sabor complexo, aveludado, bastante frutado…

Victor Mazzei é publicitário, escritor, professor universitário, mestre em História e doutor em EducaçÃo física (UFES).

 

Mais Artigos

RÁDIO ES BRASIL

Continua após publicidade

Fique por dentro

ECONOMIA

Vida Capixaba