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quinta-feira, 4 DE julho DE 2024

Água e fenômenos climáticos, uma combinação que pode ser mortal

Enchentes devastadoras e secas prolongadas: a má gestão ambiental provoca tragédias urbanas e rurais e ameaça a disponibilidade dos recursos hídricos

Por Daniel Hirschmann

As mudanças climáticas têm causado impacto sobre os recursos hídricos do Brasil e do mundo, com efeitos extremos e alarmantes. Esses eventos destacam a urgência de abordar as causas e consequências das mudanças climáticas, com adoção de políticas eficazes e ações imediatas para proteger os recursos hídricos do país.

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As enchentes no Rio Grande do Sul e do sul do Espírito Santo, especialmente na cidade de Mimoso do Sul, em 2024, ilustram como eventos climáticos extremos podem desestabilizar e até destruir cidades e comunidades inteiras. Ao mesmo tempo, têm acontecido secas severas, como a da Amazônia em 2023, causando a baixa acentuada dos níveis dos rios e afetando a economia e a vida de todos os habitantes da região. Junto com a seca vieram fortes ondas de calor.

Na base dos fenômenos que estão afetando o comportamento das águas está uma combinação de sistemas climáticos naturais que favorecem a ocorrência de cheias – como o El Niño – e o aquecimento global, que também já traz uma série de impactos e ainda intensifica esses sistemas climáticos, criando um ciclo perverso de ampliação dos riscos.

Ciclo da água mais intenso

“Compreender mudanças no ciclo da água é importante, tanto quanto a preparação para desastres. A água é um recurso essencial para todos os ecossistemas e sociedades humanas, especialmente para a agricultura.” - Saulo Aires de Souza, coordenador de Mudanças Climáticas da ANA - Foto: Jonilton Lima / Banco de Imagens ANA
“Compreender mudanças no ciclo da água é importante, tanto quanto a preparação para desastres. A água é um recurso essencial para todos os ecossistemas e sociedades humanas, especialmente para a agricultura.” – Saulo Aires de Souza, coordenador de Mudanças Climáticas da ANA – Foto: Jonilton Lima / Banco de Imagens ANA

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) alertou que o ciclo da água vem se acelerando e continuará a se intensificar, à medida que o planeta aquece. Em geral, essa intensificação do ciclo faz com que lugares úmidos fiquem mais úmidos e lugares secos, mais secos. “Isso é devido, em parte, à água extra na atmosfera, que é levada para lugares onde já há uma quantidade grande de chuvas pelas correntes de ar”, comenta o coordenador de Mudanças Climáticas da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), Saulo Aires de Souza.

Ele explica que, com temperaturas mais elevadas, há maior evaporação da água para a atmosfera e o ar mais aquecido retém uma quantidade maior de vapor do que numa situação sem aquecimento global. Com mais vapor, as chuvas são mais frequentes e intensas, agravando o risco de cheias e inundações.

Além disso, devido à maior intensidade da precipitação, parte dessa água – que antes se infiltrava no solo – escoa diretamente, diminuindo a recarga das águas subterrâneas e da vazão de base de rios e poços. Souza salienta que esse impacto, associado ao aumento da temperatura e evaporação, eleva também o risco de secas, tornando-as mais comuns.

“Compreender esta e outras mudanças no ciclo da água é importante, tanto quanto a preparação para desastres. A água é um recurso essencial para todos os ecossistemas e sociedades humanas, especialmente para a agricultura”, frisa o coordenador da ANA.

No sul do ES, Mimoso do Sul foi praticamente destruída pelas águas em março de 2024. Outras 12 cidades da região também foram impactadas. Só nas lavouras a Secretaria de Estado da Agricultura estimou os prejuízos em mais de R$ 72 milhões
No sul do ES, Mimoso do Sul foi praticamente destruída pelas águas em março de 2024. Outras 12 cidades da região também foram impactadas. Só nas lavouras a Secretaria de Estado da Agricultura estimou os prejuízos em mais de R$ 72 milhões

Impactos urbanos poderiam ser evitados

Os impactos negativos provocados pelas modificações no clima acabam afetando os centros urbanos, exigindo atenção e a busca de soluções para a formação de cidades resilientes, adaptadas aos fatores decorrentes dessas alterações do clima, com o planejamento do uso urbano do solo e uma gestão de riscos adequada. “Precisamos repensar rapidamente todo nosso planejamento urbano e territorial. Temos que aprender a conviver com as cheias e secas frequentes”, adverte Saulo de Souza.

A vulnerabilidade urbana às catástrofes climáticas no Brasil é amplificada por uma combinação de crescimento populacional, pobreza associada à regularização fundiária e degradação ambiental. A ocupação de áreas de alto risco, como margens de rios e encostas, é uma prática comum, expondo comunidades inteiras a perigos iminentes.

O arquiteto e urbanista Emilio Merino Dominguez explica que alguns fatores técnicos agravam os impactos climáticos, transformando-os em tragédias. Além disso, destaca “o descaso das autoridades políticas” em relação às mudanças climáticas.

“O planejamento e o controle da ocupação do solo urbano, especialmente nas áreas vulneráveis, devem ser reforçados. A incorporação do risco como critério de gestão das cidades, similar ao que já é feito em complexos industriais, também é crucial.” Emilio Merino Dominguez, arquiteto e urbanista - Foto: Difoccus
“O planejamento e o controle da ocupação do solo urbano, especialmente nas áreas vulneráveis, devem ser reforçados. A incorporação do risco como critério de gestão das cidades, similar ao que já é feito em complexos industriais, também é crucial.” Emilio Merino Dominguez, arquiteto e urbanista – Foto: Difoccus

“Faltam planejamento e gestão urbana eficazes, instrumentos que poderiam minimizar esses impactos, mas frequentemente os gestores falham em sua implementação”, aponta Dominguez, que tem doutorado e pós-doutorado em Transportes pela Universidad Politécnica de Cataluña, da Espanha.

Peruano radicado em Porto Alegre (RS), ele lembra que, embora existam planos de emergência climática e de resiliência, eles raramente são colocados em prática. “A gestão urbana, que deveria ser regida por planos diretores proibindo assentamentos em zonas de risco e o desmatamento de matas ciliares, por exemplo, é muitas vezes negligenciada. Isso resulta em erosão do solo e impermeabilização, agravando inundações e deslizamentos”, observa o urbanista.

Alia-se a isso a poluição atmosférica, aumentada pelas emissões industriais e pelo uso excessivo de automóveis, que contribui para a degradação ambiental. “O setor de transporte é responsável por 25% dos poluentes, e há uma carência de projetos específicos de descarbonização nas cidades”, frisa.

Emilio Dominquez destaca que, para adaptar as cidades às mudanças climáticas, é essencial desenvolver ações prioritárias, como a melhoria das previsões climatológicas e dos sistemas de alerta, além do monitoramento de eventos climáticos extremos e do ambiente urbano.

“O planejamento e o controle da ocupação do solo urbano, especialmente nas áreas vulneráveis, devem ser reforçados. A incorporação do risco como critério de gestão das cidades, similar ao que já é feito em complexos industriais, também é crucial para mitigar os impactos das mudanças climáticas”, orienta.

Água e fenômenos climáticos, uma combinação que pode ser mortalIntervenção já é urgente

O climatologista Carlos Nobre também considera que é hora de interferir. Ele pontua que os sistemas de alerta de eventos extremos melhoraram muito, com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), mas acha que os resultados ainda são insuficientes porque as populações não estão protegidas.

Nobre observa que, quando o Cemaden faz um alerta, as defesas civis têm que se preparar para retirar centenas de milhares, ou até milhões, de pessoas, nos casos de chuvas que afetam um número muito grande de municípios, como aconteceu em quase todo o Rio Grande do Sul no mês de maio.

Ele cita estudo do Cemaden de 2018 que já indicava que 825 municípios brasileiros têm numerosas áreas de risco. “Os estudos mostraram um número, naquela época, de oito milhões de brasileiros morando em áreas de risco de deslizamentos e inundações, sendo dois milhões morando em áreas de altíssimo risco. Isso não pode continuar”, diz. O Cemaden está refazendo os estudos, tendo chegado a quase dois mil municípios. “Eu tenho certeza de que esse número de pessoas em áreas de altíssimo risco vai passar de quatro milhões de brasileiros”, lamenta.

Por isso, o climatologista defende que, no médio prazo, milhões de pessoas em todo o Brasil sejam retiradas dessas áreas de risco de deslizamentos, inundações, enxurradas, e até mesmo de zonas costeiras muito vulneráveis às ressacas, que estão ficando cada vez mais fortes, devido ao aumento do nível do mar.

Na visão dele, está “mais do que na hora de interferir”, em todos os sentidos. “É preciso melhorar os sistemas de retirar as pessoas das áreas de risco na véspera do evento extremo, mas a médio prazo é necessário retirá-las permanentemente, principalmente as que moram em áreas de altíssimo risco”, defende Nobre.

Água e fenômenos climáticos, uma combinação que pode ser mortalRiscos no Espírito Santo

No Espírito Santo, vários municípios estão em situação de risco quanto às mudanças climáticas. O chefe do Departamento de Engenharia Ambiental da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), Diogo Costa Buarque, cita o caso de Mimoso do Sul, município mais atingido pelas enchentes no sul do estado, em março deste ano, mas lembra que há mais cidades que frequentemente têm problemas com inundação.

“São áreas em que a parte urbana é mais plana. Tudo que chega acaba se concentrando ali e o município começa a se estrangular. Existem locais em que são feitas construções em cima da própria calha do rio, praticamente tampando o rio, ou bem na beira do rio, ocupando sempre áreas de inundação”, observa o professor.

De acordo com ele, são áreas que, naturalmente, o rio vai ocupar quando inundar. “Mas, quando ele ocupa com a população ali, transforma isso no que a gente chama de desastre natural. São eventos naturais que acabam se transformando em desastre”, comenta.

Ações capixabas

“É muito importante o poder público municipal se mobilizar para elaborar esse plano de maneira democrática, ouvindo a população e com base em evidências científicas, a fim de traçar as estratégias para prevenir, mitigar e adaptar a realidade local de maneira mais resiliente aos eventos climáticos extremos.” - Pablo Lira, diretor-presidente do IJSN - Foto: Divulgação/IJNS
“É muito importante o poder público municipal se mobilizar para elaborar esse plano de maneira democrática, ouvindo a população e com base em evidências científicas, a fim de traçar as estratégias para prevenir, mitigar e adaptar a realidade local de maneira mais resiliente aos eventos climáticos extremos.” – Pablo Lira, diretor-presidente do IJSN – Foto: Divulgação/IJNS

Segundo o diretor-presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), Pablo Lira, já há um trabalho integrado da Defesa Civil do Espírito Santo com as defesas civis municipais para garantir a gestão e a primeira resposta ao risco. Ele destaca, também, a iniciativa do Plano Estadual de Descarbonização e Neutralização de Gases de Efeito Estufa, que traça um diagnóstico da situação atual do estado, incluindo análises do inventário de emissões, vocações, potencialidades, limitações e características socioeconômicas.

O plano faz parte do Programa Capixaba de Mudanças Climáticas e foi lançado pelo governador Renato Casagrande durante a COP 28. “Essa é uma iniciativa muito importante porque possibilita reduzir a emissão de gases de efeito estufa, que potencializa os efeitos do aquecimento global”, diz Lira. O objetivo é reduzir em 50% as emissões de gases de efeito estufa até 2030 e neutralizar até 2050.

Planos municipais

O presidente do IJSN acrescenta que é importante os municípios também desenvolverem estratégias e construírem os seus Planos Locais de Ação Climática (PLACs) para reduzir a emissão de gases poluentes. Nesses planos é possível fazer o mapeamento das áreas de risco e de risco crítico, além de uma análise das medidas de adaptação e mitigação aos eventos climáticos extremos.

O IJSN fez um levantamento recentemente e constatou que 15 das 27 capitais brasileiras não têm um plano local de ações climáticas, inclusive Porto Alegre e Vitória, a única capital da região Sudeste que não conta com esse plano. “É muito importante o poder público municipal se mobilizar para elaborar esse plano de maneira democrática, ouvindo a população e com base em evidências científicas, a fim de traçar as estratégias para prevenir, mitigar e adaptar a realidade local de maneira mais resiliente aos eventos climáticos extremos”, diz Pablo Lira.

Água e fenômenos climáticos, uma combinação que pode ser mortalSoluções locais

Saulo de Souza, da ANA, também vê como fundamental o papel dos municípios, que precisarão de um novo planejamento territorial para encontrar novos lugares, no meio urbano, a fim de trazer de volta os espaços verdes para as cidades. “Essas soluções são inúmeras e partem sempre da particularidade e necessidade de cada local. Isso é importante ter em mente”, frisa.

Por isso, a primeira medida que ele indica é envolver, principalmente, os atores locais, pois só as pessoas que vivem no local têm condições de entender esses riscos e procurar as melhores soluções para minimizar os impactos desses novos riscos climáticos.

No caso dos recursos hídricos, ele menciona os comitês de bacias hidrográficas, onde ocorre o debate e a discussão que possibilita uma gestão e planejamento dos recursos de forma adequada. “Esses comitês, que nós chamamos de ‘parlamento das águas’, congregam tanto entidades de estado, de governo, como setores usuários e sociedade civil”, explica. “Uma das ações do nosso setor, principalmente, é fortalecer esses comitês, o que é uma medida fundamental para nos adaptarmos às novas realidades.”

Baixo arrependimento

Outras medidas que podem ser incorporadas são as chamadas “soluções de baixo arrependimento”. São aquelas que, em qualquer cenário, no futuro próximo, não vão causar arrependimentos por terem sido adotadas.

“Temos inúmeras soluções, antes de pensarmos em infraestruturas grandes, que muitas vezes trazem fortes impactos ambientais e com custos muito altos. Por exemplo, ações de educação ambiental, que em qualquer cenário serão sempre efetivas”, explica o coordenador de Mudanças Climáticas da ANA. Somam-se aí os sistemas de alerta de eventos extremos, também citados pelo climatologista Carlos Nobre, que Saulo de Souza considera efetivas.

“A gente já tem já um amplo conjunto de medidas e de ações de adaptação que podem ser utilizadas, antes de pensarmos nessas grandes infraestruturas. É fundamental que a gente já comece a incorporar isso. Já não é mais uma ação para o futuro.

É uma ação para hoje. Já temos um rol bastante significativo de soluções”, conclui.

*Matéria publicada na revista ES Brasil 222, de julho de 2024. Leia a edição completa sobre águas aqui

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