E não pense que o ataque à memória gustativa parou por aí. Parece haver um complô para extinguir tudo aquilo que um dia saboreamos na infância
Por André Gomyde
Quem se lembra da nata de verdade, levante a mão. Sim, aquela nata cremosa, retirada com cuidado do leite fervido ou batida à mão, a poucos passos de virar manteiga. Um deleite de textura suave e sabor inconfundível que era o verdadeiro ouro branco das mesas de café da manhã. Pois bem, como tudo que é bom e simples, a nata também caiu na mira da “evolução” industrial. Hoje, olhando os rótulos, o susto: gelatina? Como assim? Transformaram nossa velha e boa nata num híbrido de sobremesa gelatinosa que mal reconhecemos. O sabor? Longe de ser o mesmo.
E não pense que o ataque à memória gustativa parou por aí. Parece haver um complô para extinguir tudo aquilo que um dia saboreamos na infância. O pão? Onde está aquele pão com cheiro de padaria, com casca crocante e miolo fofo que exigia habilidade para cortar sem amassar? Hoje, a maioria parece uma esponja insípida. O achocolatado, que transformava o leite em pura magia, agora parece uma sombra pálida da doçura e do aroma que conhecíamos.
A margarina, então? Antes, era a rainha do pão quentinho, com aquele toque salgado delicioso. Hoje, é um emaranhado de óleos hidrogenados que mal se espalham direito. E o queijo fatiado? Antes elástico, saboroso, aquele que fazia fila no sanduíche quente. Hoje, derrete de um jeito estranho e quase plástico. Será que estamos nos tornando nostálgicos demais ou os alimentos realmente perderam a alma?
Mas calma, nem tudo está perdido. Existe um herói nessa saga gastronômica: a goiabada cascão. Ah, a goiabada! A resistência encarnada contra a pasteurização dos sabores. Aquela mistura rústica de goiaba e açúcar, com pedaços que grudam nos dentes, ainda consegue transportar-nos para a infância, onde uma fatia generosa, acompanhada de queijo, era o ápice da felicidade.
Por favor, indústrias, deixem a goiabada em paz! Que ela continue fiel às suas raízes, intocada pela modernidade destrutiva que já devastou tantos outros sabores. Porque, se até a goiabada sucumbir, o que restará de nossas lembranças gustativas?
Talvez seja hora de parar e refletir. Será que estamos valorizando o que realmente importa? Ou será que a busca por eficiência, durabilidade e aparência perfeita está nos privando de algo mais essencial: o sabor genuíno, aquele que cria memórias e aquece o coração? Enquanto isso, seguimos em nossa luta silenciosa: um brinde à nata de verdade, ao pão com gosto de infância e, claro, à goiabada cascão, nossa última trincheira contra a extinção dos sabores que nos fazem ser quem somos.
André Gomyde é presidente do Instituto Brasileiro de Cidades Humanas, Inteligentes, Criativas e Sustentáveis e Mestre em Administração pela FCU, nos Estados Unidos. Instagram: @andre.gomyde