Feminismo, a liberdade de ser

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Elisa Lucinda
Foto: Reprodução

Ao contrário do machismo, o feminismo quer igualdade, consideração e oportunidades na vida civil

Muito tenho me reconfigurado na nova cara do feminismo. Essa palavra não deve espantar ninguém porque não é nociva. Senão, vejamos: mulheres trabalhando fora, seu direito a creches, seu direito de votar e a Lei Maria da Penha são exemplos de direitos alcançados pela luta feminista. Ao contrário do machismo, o feminismo quer igualdade, consideração e oportunidades na vida civil. Feminicídio, importunação sexual, assédio e abuso são palavras que agora, por alcançarem o lugar de lei, protegem-nos. São novas palavras para velhos crimes.

O que estamos descobrindo neste momento é a extensão de cada palavra dessas. Contando com o nosso silêncio, o machismo e a truculência do patriarcado fizeram uma verdadeira chacina emocional no feminino por séculos.

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Por muito tempo, confinadas às atividades da casa e tratadas com excesso de jornadas de trabalho, tal qual escravizadas, as mulheres suportaram cargas pesadas; algum homem que me lê já se imaginou lavando a roupa (antes da máquina de lavar) de oito pessoas? Acrescentemos o preparo da comida para as oito bocas, mais a limpeza da casa que oito pessoas sujam, mais o banheiro, quintal ou o que houver. Por séculos, mulheres se achavam sem o direito de descansar.

No caso da mulher negra, a coisa piora muito, porque ela teve que trabalhar fora, tão logo se viu sozinha, abandonada pelo marido e com sua penca de filhos, morando em lugares sem infraestrutura e de difícil acesso. Seu “feminismo” de buscar alimento por conta própria para nutrir as boquinhas da prole foi gritado pela necessidade. E ainda assim, mesmo bancando a casa, não tinha o respeito da sociedade.

Quantas vezes cabe à mulher o lugar de culpada sendo ela a vítima? “Não soube manter a família”; “Não foi uma boa esposa, por isso ele foi embora”; “Ela o traiu, por isso mereceu a surra”; “Ela abortou, deve ser presa”. Se for estuprada: “O que ela estava querendo com aquele shortinho?”. E por aí vai. Tanto é verdade que é comum sabermos das falas dos seus agressores nessa linha: “Tá vendo o que você faz eu fazer com você?”.

“Cabe a nós criarmos novos meninos para garantir que quando cresçam não matem suas parceiras”

Por causa dessa culpabilização da vítima é que tanto tempo ficamos em silêncio. Acho que se pode dizer que toda mulher já sofreu abuso psicológico, no mínimo: “Essa roupa está curta demais”; “Essa cor chama muito a atenção”; “Você tem que estar em casa antes de eu chegar”; “Por que não posso ter a senha do seu celular?”. Formas de controle e ciúmes tomaram o lugar do “amor”, agiram em nome do “amor”, compuseram a performance do “príncipe”. O arquétipo de tal mito tem autorização para ser agressivo e bipolar com dramáticos pedidos de desculpas, presentes e declarações extremadas depois da violência.

O fim do nosso silêncio pôs João de Deus na cadeia, e o grande momento que vivemos, o tempo de escalada funda no autoconhecimento da nossa imagem como civilização, nos propõe a oportunidade de não compactuar com o silêncio. Este não só não nos protegeu até aqui, como também garantiu a impunidade de verdadeiros estupros até dentro do matrimônio.

Homens são neste momento convocados à luta. Não gosto de excluir ninguém, não posso discutir violência contra a mulher sem incluir o homem. Cabe a nós criarmos novos meninos para garantir que quando cresçam não matem suas parceiras. Para tanto, o masculino tem que buscar uma nova configuração também. Entender um jeito de ser homem sem ser mandando na mulher, oprimindo, machucando, maltratando. Nefasta a educação torta que esculpiu a ideia de um masculino violento, agressivo, invasivo, mimado, grosseiro e sem noção. Custou muito caro aos homens, provocou guerras, criou seres que seriam melhores se tivessem podido brincar de boneca ou chorado.

É nova era. Temos nela oportunidades e desejamos que os olhares femininos possam entrar mais na dinâmica do mundo e que ambos, homens e mulheres, possam construir um mundo menos sangrento. Mulheres não querem vingança em relação ao domínio masculino. O feminismo não mata. Não pretendemos um lugar onde a gente oprima os nossos homens. Vamos de mãos dadas. Ninguém é mais dono de ninguém.


Elisa Lucinda é poeta, atriz, jornalista, professora e cantora