Elas serão oferecidas de maneira gratuita nos próximos três anos pelo projeto Música Brasilis, sendo 20 obras de D. Pedro I
Pouco após assumir o posto de líder da Igreja Católica, em 1823, o papa Leão XII recebeu no Vaticano uma encomenda do império brasileiro. Dela, fazia parte um punhado de manuscritos da partitura de uma missa em sua homenagem. No alto, lia-se o nome do autor. D. Pedro I: o mesmo d. Pedro I que um ano antes havia declarado a independência do Brasil em relação a Portugal
“Ainda que seja um aspecto pouco conhecido de sua vida, ele compôs peças de qualidade louvável”, afirma a cravista e pesquisadora Rosana Lanzelotte. “E usava a música como instrumento político. A missa para o papa Leão XII é símbolo disso. Ela foi escrita e enviada à Europa como tentativa de estreitar relações com o Vaticano, algo importante para o Brasil que acabara de passar pelo processo de independência.”
Cerca de 20 obras de d. Pedro I chegaram aos nossos dias. E são apenas alguns dos destaques de um conjunto de cinco mil partituras de compositores brasileiros que serão editadas e oferecidas de maneira gratuita nos próximos três anos pelo projeto Musica Brasilis, criado por Lanzelotte em 2009 com o objetivo de resgatar e difundir a música brasileira, tendo, desde então, editado cerca de 1.750 obras.
Lanzelotte sempre esteve ligada à música brasileira. Como intérprete, deu atenção especial a obras criadas no País nos séculos 18 e 19, realizando espetáculos em que músicos subiam ao palco ao lado de atores e atrizes que recriavam o contexto de época (o próximo, a Música da Independência, será realizado no dia 7 de maio no Rio, e no dia 12 de maio, em Paris).
“O Musica Brasilis começou a tomar forma a partir da premissa de que a presença da música brasileira nas temporadas só poderia de fato ser constante se as partituras estivessem disponíveis. Se qualquer orquestra pode pegar na internet a partitura bem editada de uma sinfonia de Beethoven, por que escolheria pegar uma versão quase ilegível de um manuscrito de Alberto Nepomuceno, por exemplo, o que naturalmente levaria a dificuldades de execução?”, questiona.
O projeto contempla tanto compositores vivos como autores do passado. No primeiro caso, as edições se sustentam em parte pelos direitos de aluguel e venda de partituras. No segundo, porém, as edições contam com financiamento público. “O grande foco em compositores do passado, em domínio público, não era necessariamente um recorte obrigatório. Mas fomos nos dando conta de que havia muito a se fazer neste universo.”
Todo o trabalho da última década preparou o instituto para essa nova empreitada. “As pessoas perguntam: onde eu estava com a cabeça? Eu também me pergunto, às vezes. Mas na verdade eu sei. (A bibliotecária) Mercedes Reis Pequeno, que criou nos anos 1950 a Divisão de Música da Biblioteca Nacional, fez levantamentos que mostravam haver por ano, no Brasil, no início do século 20, a edição de dois mil títulos de partituras. Era uma outra época, as pessoas compravam as peças para poder tocar em casa, obras para piano, canções, danças de salão.”
Essas edições são um dos caminhos percorridos pelo projeto, que também entrou em contato com casas editoras, como a Irmãos Vitale, que permitiram ao projeto criar novas edições de peças que já não estão mais disponíveis em seus catálogos, pois com o tempo as reedições se tornaram, segundo Rosana, economicamente inviáveis.
A escolha de obras também segue sugestões de outras instituições musicais brasileiras. Foi o que aconteceu com as aberturas das óperas do compositor brasileiro Antônio Carlos Gomes, autor de obras como O Guarani. “A Filarmônica de Minas Gerais está gravando as aberturas para o selo Naxos, dentro de uma série dedicada à música brasileira idealizada pelo Itamaraty em 2017. Então, a pedido deles, começamos a trabalhar nessas edições.”
O projeto também realizou uma consulta pública, em que especialistas, músicos e profissionais da área puderam sugerir obras e autores a serem editados, o que permitiu, segundo Rosana, “a maior participação e envolvimento de diferentes instituições no projeto”.
Preservação
Além das obras de d. Pedro e das aberturas de Carlos Gomes, a expectativa é contemplar pelo menos outros 20 autores. O mais antigo é Luis Álvares Pinto, nascido em 1719; o mais recente, Lorenzo Fernandez, que morreu em 1948. Entre os dois, estão nomes como José Maurício Nunes Garcia, Chiquinha Gonzaga, Henrique Oswald, Ernesto Nazareth, Alberto Nepomuceno ou Patápio Silva.
“Há nomes pouco conhecidos, como Euclides Fonseca ou Deolindo Fróes. Mas mesmo de nomes mais presentes, como Francisco Braga, Zequinha de Abreu, Luciano Gallet, há muita coisa ainda a ser editada”, acredita Rosana.
O material poderá ser consultado no site do Musica Brasilis à medida em que for sendo editado (já estão lá as peças de Carlos Gomes e D. Pedro I). “Uma das demandas do projeto é justamente a preservação digital perene. Todas as imagens estão sendo exportadas para a Wikimedia Commons. E os arquivos serão preservados também pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações, cuja função é justamente a preservação digital.”
Informações de Agência Estado