Ficar sem Whatsapp por um dia é trend? É assunto? É polêmica?
Por Claudio Rabelo
Experimente vendar seus olhos, coletivamente como no imaginário de Saramago, por apenas 24 horas. Ainda assim você saberá que ainda poderá enxergar no dia seguinte, pois apenas está passando por uma experiência momentânea de privação dos sentidos. Como seria caminhar sozinho nas ruas, realizar as compras, cumprir as rotinas laborais e sociais? Os enamorados deverão cuidar para não confundir seus pares nos momentos dos afetos íntimos.
Nesse dia não será possível assistir à nova série da Netflix, nem a Novela ou Telejornal, tampouco completar a leitura de uma trama literária. Há grandes chances de cair na inconfundível e memorável armadilha háptica de comer o feijão conservado no pote de sorvete.
Como seria para preparar os alimentos, identificar os produtos na geladeira e sentir a insegurança pelo manuseio do fogão a gás ou da faca afiada? É dia de pagar contas. Como conferir os valores e registrar o cumprimento das responsabilidades fiscais? Nesse momento devemos pensar que não deveríamos ter negligenciado, por mero egoísmo, as línguas inclusivas como Libras e Braile, acreditando que não precisaríamos disso.
Tente agora passar um dia inteiro sem água potável. O chuveiro não funciona e não há como higienizar as mãos e os alimentos. A privada com a carga acumulada pelo usuário anterior já denuncia em flagrância o autor do delito pelo indício da fragrância, nada agradável. Não há água na geladeira e em nenhum freezer de supermercado. Na padaria da esquina há Gatorade, cerveja, café, refrigerante, mas não há água.
Tal ausência só se nota após a degustação da demasiado salgada batata frita, que remete ao clássico e preciso comercial do refrigerante Teen, cujo slogan se dirigia para a pior sede. Justamente nesse dia, ao andar descalço pisa no cocô do cachorro, quase uma deferência ao personagem Aparício, interpretado por Renato Aragão na década de 80 ou Macabéa, a anti-heroína de Clarisse Lispector. A vida não lhes foi generosa na virtù (acaso) e tampouco na fortuna (vigor). Lei de Murphy? Por que pisar na comida processada pelo intestino canino justamente no dia em que não pode lavar os pés? Poderia passar um pano com álcool pra tentar dormir, mas ainda assim o cheiro irá persistir. E o pano utilizado pra limpar tal contingência não pode ser lavado, obviamente, uma vez que não há água. O que dizer sobre as ausências?
Nossas mãos, a capacidade de andar, o ar, a juventude, a saúde mental, um ente querido, a cidade que amamos, o emprego perdido, a comida farta, o amor carnal, a fé, o café… como faz falta um café quando mais precisamos dele! Sempre nos referimos aos objetos e à realidade em sua materialidade. Descrevemos as presenças, mas a todo momento, em todo lugar e em cada pessoa as ausências se manifestam. E isso alimenta o clichê que discorre sobre a valorização apenas daquilo que perdemos.
Ficar sem Whatsapp por um dia é trend? É assunto? É polêmica? Nos faz refletir sobre um mundo sem o aplicativo, em seu valor de uso e mercado. Ao valorizar sobre o que temos em presença e sobre a magnitude das ausências, pude chegar a apenas uma conclusão. Ficar um dia sem o Whatsapp não é totalmente irrelevante.
Cláudio Rabelo é professor de Publicidade e Propaganda na Ufes, pós-doutor em Estudos Culturais e autor do Livro “Faixa preta em publicidade e propaganda”