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quinta-feira, 25 abril, 2024

Muito além da Covid-19

Os novos rumos necessários à gestão da Saúde

Por Luciene Araújo

“Está todo mudo pensando na pandemia, sobre o que fazer agora, e isso é o que deve ser feito mesmo. Mas não existe nenhum plano estruturado para a pós-pandemia no serviço público, em lugar nenhum. E isso também é bastante preocupante.” O desabafo do médico que atua há 19 anos no serviço público traduz a preocupação de outros dois profissionais da saúde que também não quiseram ser identificados, mas que garantem: o desafio se mostra cada vez maior.

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Diante do aumento desordenado na demanda de atendimento, com hospitais das redes pública e privada no limite dessa possibilidade, com quase a totalidade dos leitos ocupados por pacientes de Covid-19, profissionais de saúde ficam sobrecarregados por jornadas tantas vezes duplicadas em consequência das muitas baixas de colegas que adoeceram ou mesmo morreram. Com esse cenário, não é difícil imaginar que as demais carências se acumulem, em um sistema que já estava longe de ser o ideal. Além disso, são muitos os pacientes com outras enfermidades que se recusam a ir a um consultório, unidade de saúde ou hospital, temendo o contágio pelo novo coronavírus.

Bernardina Nascimento, de 45 anos, começou a sentir um mal-estar e, após sete dias, estava com muita dor nas costas, tosse, cansaço excessivo e febre.

Ela conta que precisou “ser arrastada” pela filha até o hospital. “Achei que estava com Covid, que ficaria internada e que poderia morrer. Então tomei remédio por conta própria. Mas era uma pneumonia tóxica, porque mexi muito com querosene”, relata.

Já o caso do professor João Puello, 72, teve um outro desdobramento. Por sofrer de rinite alérgica há anos, ele pensou que as tosses insistentes eram reflexo dessa doença. Quase 10 dias depois desse primeiro sinal, ele precisou ir direto para a UTI, com estado avançado da Covid-19.

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“Aproveitamos a reestruturação que a pandemia nos exigiu para acelerar melhorias e repensar o serviço público de saúde” | Nésio Fernandes, secretário de Estado da Saúde

Especializada em clínica médica pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e membro do American College of Physicans e da Estratégia de Saúde da Família da Fapes/BNDES, a médica Alessandra Mendes destaca que só conseguiremos alcançar a magnitude desse retrocesso na falta de atendimento às demais enfermidades no longo prazo, mas já há dados preocupantes.

“A ‘segunda curva’ da Covid-19, por exemplo, diz respeito a todas as mortes que estão ocorrendo e ocorrerão secundariamente a doenças agudas com indicação de tratamento emergencial e a descompensação de doenças crônicas com a mesma necessidade, postergadas pelo medo de acesso ao sistema de saúde.

Doenças que não foram diagnosticadas por ‘só enxergarmos’ a Covid-19 e que não tiveram a possibilidade de ser absorvidas por um sistema sobrecarregado. A epidemia que mais mata no mundo, a de doença coronariana, por exemplo, não parou para a da Covid-19 passar”, ressalta a especialista.

Após identificar uma redução de cerca de 70% nos atendimentos de infarto no país, estatística que se repetiu em outros centros ao redor do mundo, como Estados Unidos, Itália e Espanha, a Sociedade Brasileira de Hemodinâmica e Cardiologia Intervencionista lançou a campanha “O infarto não respeita quarentena”.

“As pessoas estão morrendo em casa. Um estudo do norte da Itália evidenciou aumento de 58% dos atendimentos contra paradas cardíacas extra-hospitalares.

O mesmo cenário acontece com o câncer e tantas outras doenças. Colheremos os resultados da segunda curva e a maioria dos hospitais e serviços médicos deve se reestruturar para acolher essa demanda reprimida que já está em curso”, aponta a doutora Alessandra.

Um levantamento das Sociedades Brasileiras de Cirurgia Oncológica e de Patologia indica que, por causa da pandemia do novo coronavírus, houve redução de até 90% de exames que deveriam ser oferecidos em hospitais.

E o Colégio Brasileiro de Cirurgiões estima que cerca de 45 mil pessoas podem morrer nos próximos meses por cânceres não tratados nesse período.

Estamos vivendo uma experiência muito nova. A mais semelhante a ela foi a gripe espanhola, há mais de 100 anos, aponta o secretário estadual de Saúde, o médico Nésio Fernandes de Medeiros Junior. “No Brasil, não há nenhum serviço de saúde free covid, desde uma unidade básica, passando pelos prontos atendimentos, até os hospitais para cirurgias eletivas.

Uma doença que desafia a comunidade científica, empenhada em reunir detalhes, conhecer o comportamento dela e saber como efetivamente combatê-la.”

Então, o que devemos esperar na pós-pandemia? Qual será o tamanho desse desafio? Estado e municípios estão traçando planejamentos para a nova realidade que se desenha?

Situação atual

Para atender os pacientes com Covid, foi preciso suspender procedimentos cirúrgicos eletivos, cirurgias ambulatoriais eletivas, consultas e exames ambulatoriais especializados, decisão que passou a vigorar no último dia 20 de março, por meio da Portaria nº 038-R.

“Essa suspensão e a revisão de prioridades para leitos não foram um capricho governamental, mas uma necessidade apontada pelas próprias sociedades médicas, até porque esses procedimentos favorecem a contaminação do ambiente cirúrgico e dos pacientes”, explica o secretário.

Os recursos aplicados até agora pelo Estado – provenientes do tesouro, de repasses federais, de doações ou de superávit financeiro – chegam a R$ 219 milhões. O dinheiro é utilizado para a aquisição de respiradores e insumos; abertura e adequação de leitos na rede própria; compra de leitos na rede filantrópica e privada; contratação de pessoal; aquisição de equipamentos de proteção individual (EPIs) e obras, segundo dados da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa).

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“Não vencem os mais fortes, e sim os mais adaptados. Infelizmente, não vimos a mesma celeridade, eficiência e comprometimento do setor privado no setor público”
Alessandra Mendes, médica – Foto: Divulgação

“Antes da pandemia, havia pouco mais de 600 leitos de UTI públicos e estamos agora com praticamente o dobro dessa quantidade. Somente em hospitais próprios do Estado, sem considerar os privados e os filantrópicos contratados, são mais de 400 novos leitos que irão permanecer no funcionamento pós-Covid”, afirma Nésio.

Ele complementa: “Estamos revendo o perfil dos hospitais públicos e privados para podermos, após a pandemia, redesenhar a organização da rede. O Jayme Santos Neves, por exemplo, se tornou o segundo maior hospital público do país em atenção à Covid, com 250 leitos de UTI. No ‘novo normal’, com essa capacidade tecnológica, ele deverá assumir um perfil assistencial diferente, porque a demanda anterior migrou para outros hospitais.

E abrimos um novo hospital somente para cirurgias ortopédicas, com 70 leitos de enfermaria e 10 de UTI. Pacientes antes da pandemia esperavam entre três e quatro dias por um leito de UTI. Agora essa espera baixou para um dia e meio”.

Outro desafio é o quadro pessoal: dos 5.931 servidores que atuam nos hospitais estaduais, 459 estão afastados de suas atividades por apresentarem algum tipo de sintoma gripal. A Sesa abriu processo seletivo simplificado de contratação emergencial (em abril), com formação de cadastro de reserva, para médico e outros cargos de nível superior, além de médio e técnico.

Até o momento, 950 profissionais foram contratados, e esse quantitativo pode chegar a 2 mil. Nos locais em que houve falta de interesse dos profissionais, principalmente de técnicos de enfermagem, foi preciso adotar a contratação direta.

A rede municipal

A dificuldade do Estado se repete nos municípios. Na Serra, antes do coronavírus, eram realizadas, em média, 7 mil consultas por mês, entre várias especialidades. Agora o número de consultas e retornos de parto de alto risco gira em torno de 300.

A Secretaria de Saúde do município informou que iniciou o planejamento para enfrentar os desafios após a pandemia e que, no retorno à rotina, os casos mais graves serão identificados pelos médicos especialistas e atendidos prioritariamente, tanto para consulta quanto para exames.

“Vamos manter estendidos os prazos para retirada de medicação nas farmácias até a completa normalização dos fluxos. Nossos programas de hanseníase e tuberculose, pré-natal e puericultura, que não foram suspensos, vão continuar normalmente. Pacientes do programa Hiperdia (diabéticos e hipertensos) estão sendo monitorados pelas equipes de Programas de Saúde da Família e de Telemedicina”, aponta o comunicado.

Em Cariacica, também foram suspensos os atendimentos ambulatoriais eletivos, com exceção de pacientes com quadro que ofereça risco de morte, como respiratório agudo; hipertensos e portadores de diabetes descompensados; portadores de HIV/Aids e de doenças autoimunes; e aqueles em tratamento de sífilis, tuberculose ou hanseníase.

Crianças com quadro infeccioso ou situação de risco também se enquadram nesse grupo. Em relação ao plano pós-Covid-19, o município está se preparando para o retorno das consultas e procedimentos eletivos (ainda sem data). Haverá ampliação das equipes de Saúde da Família e retomada integral das ações de Vigilância Ambiental.

Vila Velha foi o primeiro município no Estado a estabelecer um planejamento, por meio do Plano de Contingência Covid-1, para determinar fluxos nas redes municipal, estadual e privada, ao final do mês de janeiro deste ano. Nos últimos dois meses e meio, mais de 10 mil atendimentos de diversas especialidades de consultas e exames de diagnóstico foram suspensos.

Para minimizar os impactos, “médicos têm procurado manter e ajustar receitas de medicamentos de pacientes que já estavam em tratamento, principalmente nas áreas de cardiologia, neuropediatria, endocrinologia e psiquiatria, as quais concentram a maior parte dos pacientes crônicos”, informa a secretaria por nota.

“Viveremos um ‘novo normal’, em que o protagonismo parece estar por conta da utilização das tecnologias de informação e comunicação, que já se apresentavam aí disponíveis, mas o sistema de saúde local ainda não incorporou algumas inovações.

Não dá pra negar que em alguns momentos a sensação é a de trocar o pneu do carro com ele andando. A Saúde foi exposta a desafios imensos, mas, sob uma perspectiva otimista, esta experiência poderá ser uma oportunidade de mudanças de atitudes, gerando inclusive uma melhoria na qualidade das políticas públicas”, aponta o órgão.

Economia da Saúde

O Espírito Santo é muito dependente de insumos e equipamentos para a saúde vindos de outros estados e países. A capacidade interna de fornecer insumos para a economia da saúde é baixa, avalia o Ednilson Silva Felipe, professor de Economia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e cocoordenador do Observatório do Desenvolvimento Capixaba.

“Ao longo do tempo, em termos de desenvolvimento e de investimento, nos preocupamos muito com vários aspectos da economia – turismo, agronegócio, cultura, economia criativa –, visões muito importantes que perpassaram diversos planos e projetos desenvolvidos no Espírito Santo.

Mas pouco se falou sobre a ‘economia da saúde’, sobre estruturar uma cadeia de negócios, de fomentos e de estruturação como em outras áreas”, aponta Felipe. Segundo ele, embora haja planos estaduais sobre a descentralização da assistência em saúde e a regionalização hoje existente, “ficou claro com a pandemia que, mesmo que muita coisa tenha sido feita, ainda foi insuficiente”.

Muito além da Covid-19
Impactos : Na Unidade de Saúde da Glória, os atendimentos para outras doenças reduziram consideravelmente, em virtude da Covid-19. A maioria dos pacientes se consultam apenas em extrema necessidade

Legado da pandemia

O economista elenca duas medidas essenciais: “Fortalecer a economia da saúde – o que envolve incentivo à produção interna de insumos –, criar incentivos para que empresas do setor sejam atraídas e produzam alguns itens aqui no Estado e aprofundar a estratégia de descentralização de recursos, equipamentos e cadeia de saúde, para que esta esteja mais bem distribuída em todo o Espírito Santo”.

Ednilson destaca ainda se tratar de um problema comum a todo o Brasil. “Ficou clara a extrema dependência tecnológica vinda de fora. Essa fragilidade mostrou serem urgentes e prementes avanços em termos de domínio de certas tecnologias da economia da saúde no país. A brutal dependência observada na pandemia não pode continuar”, reforça.

Outra questão foi a problemática política envolvida na pandemia. “Para lidar com problemas complexos, é preciso estratégias bem definidas, conjuntas. E não se viu essa organização em termos mundiais, nem no Brasil. Problemas dessa dimensão demandam muita cooperação, muito diálogo, uma convergência mínima de ideia, visões e ações. Isso tudo faltou e continua faltando. Os países pouco conversaram entre si, até mesmo entraram em outras discussões que tornaram mais difíceis as soluções.

O caso brasileiro é ainda mais complexo, pois cada ente federado tem seus recursos, suas competências legais e sua área de atuação. Se não for trabalho em conjunto, não se dará conta. Essa convergência de ações é extremamente necessária”, finaliza o professor.

A médica Alessandra Mendes complementa a lição. “Aprendemos que planejar é fundamental. Ainda que pareça, isso não é óbvio, principalmente na gestão de recursos públicos. Aqui no Rio de Janeiro, vimos os grandes hospitais particulares se adaptarem de forma extraordinária, sem colapsarem, mesmo no pico da curva em meados de maio: gestores comprometidos, profissionais capacitados, tomada rápida de decisão, adaptação de espaço físico, mobilização de recursos financeiros e humanos. Não vencem os mais fortes, e sim os mais adaptados.Infelizmente, não vimos a mesma celeridade, eficiência e comprometimento no setor público”, aponta.

Por fim, resume as lições apreendidas com a pandemia: “Lavar as mãos é fundamental; respeitar a ciência, e não o empirismo não fundamentado e negacionista, é crucial; telemedicina veio para ficar; profissional de saúde que faz diferença é aquele que estuda e se compromete com o paciente; empatia e solidariedade não custam nada e operam grandes resultados; gestão não é para qualquer um, um gestor habilitado é ‘médico’ de toda uma comunidade a que se presta a gerir e salvará muito mais vidas que alguns médicos bem-intencionados no front”.

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