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quinta-feira, 28 março, 2024

Entrevista com o maestro João Carlos Martins, exemplo de superação e visão social

Entrevista com o maestro João Carlos Martins, exemplo de superação e visão social

A vida é feita de provações. Mas são poucos os que tiveram tantas adversidades em sua carreira como João Carlos Martins. Como pianista, aos 20 anos de idade ele já tocava no Carnegie Hall, um dos mais importantes palcos do mundo, com patrocínio de Eleanor Roosvelt, esposa do então presidente norte-americano Franklin Roosvelt.

Tornou-se um dos mais importantes intérpretes de Bach no século XX. Mas aos 26 sofreu um acidente que tirou os movimentos de três dedos na mão direita. Depois de muito esforço, voltou a tocar e chegou a gravar um disco apenas com a mão esquerda. Mas acabou tendo problemas com esta também e aos 62 anos teve que parar de tocar piano.
O que poderia ser um sofrimento se transformou numa oportunidade. Aos 64 anos, ele estreou como maestro, aliando seu talento para a música com a responsabilidade social. Hoje, a Fundação Bachiana, criada por ele, ensina música clássica a cerca de quatro mil crianças das periferias do Brasil. E João Carlos Martins não desiste. Depois de mais de uma década sem se apresentar tocando piano e apesar das sequelas que ainda tem nas mãos, ele volta a realizar um concerto com este instrumento no dia 27 de setembro na Sala São Paulo.

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ES BRASIL: Como a música entrou na sua vida?
João Carlos Martins: Aos oito anos de idade eu tinha feito uma operação malsucedida no pescoço. Tive um pequeno tumor e tive que ficar um pouco recluso, então meu pai comprou um piano e começou minha vida estudando piano. Seis meses depois ganhei um concurso de piano tocando obras de Johann Sebastian Bach, em um concurso de nível nacional. Aos anos 13 comecei a carreira nacional e aos 18 a carreira internacional.

Como foi que perceberam que você tinha talento?
Um dos maiores pianistas do mudo da época, o suíço Alfred Cortot, me ouviu tocar quando tinha uns dez anos de idade e escreveu uma carta para o presidente da República, na época o Getúlio Vargas, falando que eu era uma pessoa que o governo devia ajudar. Acabei nunca recebendo nenhuma ajuda do governo, mas o piano ficou na minha vida.

Por que Bach tornou-se o principal músico que você interpretou na carreira?
Talvez porque o primeiro concurso que ganhei foi tocando obras de Bach. Acabei me concentrando muito neste compositor e procurando mostrar como misturar a individualidade de um intérprete latino-americano com a personalidade do maior gênio da historia da música, sempre respeitando o texto, mas mostrando que Bach é um compositor que permite uma interpretação onde individualidade do intérprete também aparece.

Qual foi seu momento mais emocionante como pianista?
Foi quando Eleanor Roosvelt, esposa do presidente americano Frankling Roosvelt, promoveu a minha estreia no Carnegie Hall quando eu tinha 20 anos de idade.

Ainda muito jovem o senhor sofreu um acidente que tirou parte dos movimentos da mão direita. Como foi que isso aconteceu?
Eu tinha 26 anos de idade e estava jogando futebol no Central Park, em Nova York, e numa queda uma pedra rompeu meu nervo ulnar. Assim começou minha saga dos 26 até os 62 anos com idas e voltas sempre procurando cumprir minha missão como pianista. Até que aos 62 anos finalmente tive que parar.

O senhor ainda sofreu um segundo acidente…
Sim. Sofri um assalto na Bulgária em 1995 no qual tive uma lesão cerebral. Antes tinha tido lesão por esforço repetitivo (LER), e um tumor na mão esquerda. Em outras palavras, tudo que você imaginar eu acabei tendo na vida.

Não pensou em desistir de tocar?
Tive que parar duas vezes, mas sempre consegui voltar. Como eu digo, a pessoa é como uma flecha, ela tem seu destino. Pode ter erros, mas você corrige até alcançar seu destino. Então eu sempre procurei manter minha missão.

Diante da impossibilidade de tocar com as duas mãos, o senhor o disco “Só para Mão Esquerda”. Qual foi o resultado disso?
Gravei o concerto e peças só com a mão esquerda e foi um resultado bárbaro. Depois também perdi movimentos na mão esquerda e comecei minha vida na regência, aos 64 anos de idade. Foi um caminho pra poder manter o sonho de continuar buscando a excelência musical, mas já na regência aliada com a reponsabilidade social. Posso dizer que estou tendo um dos períodos mais emocionantes da minha vida de 10 anos para cá, desde que comecei esta nova fase.

O jornal The New York Times disse certa vez que apesar das diversidades, você “manteve a música viva” e reinventou-se como um empreendedor de sucesso. Quais os caminhos que o levaram para o empreendedorismo com foco social?
Fazer uma orquestra baseada na iniciativa privada é praticamente impossível no Brasil. Comecei sozinho, mas depois tive apoio do SESI-SP. Nunca tive ajuda do governo apesar de ser uma orquestra que está cumprindo uma missão de democratização da música clássica no Brasil, sem dúvida alguma. Tocamos nos principais palcos do Brasil e do mundo, mas também nas periferias das periferias, educando nada menos que 4000 crianças nesse universo fantástico da música clássica.

O que o empresário ganha investindo em ações como esta? O empresariado brasileiro pode fazer ainda mais?
Eu costumo repetir a frase do Villa-Lobos, mencionada anteriormente, aos empresários. Através das artes você acaba formando todo um país bem mais culturalizado. Por ter importância enorme na Ásia, na Europa e nos Estados Unidos, agora pode ser a vez do Brasil. Por que não?

Como analisa a atuação do poder público no fomento deste tipo de atividade?
Tem horas boas e horas não tão boas. Acho que com as leis de incentivo e o poder público sem atrapalhar, já é um grande passo. Às vezes o incentivo que vem do poder público tem dado enorme contribuição. O que não pode acontecer é o que aconteceu com Villa-Lobos que começou um trabalho fantástico através do poder publico e quando que foi cortado posteriormente. Quando um trem descarrilha depois para colocar novamente no trilho demora muito. Quando falo em não atrapalhar quero dizer que programas que são bons e bem intencionados devem continuar mesmo que troque o governo.

Quais os tipos de trabalhos desenvolvidos em seus em seu projeto?
São trabalhos principalmente com instrumentos de corda. Primeiro desenvolvemos uma metodologia, que acho que é uma das melhores do mundo construídas pelo professor Enio Antunes. Hoje, quando a criança começa a estudar a música clássica já começa num perfil totalmente diferente, não apenas como um passatempo. Definimos quatro tipos de crianças: aqueles que vão se tornar parte de um público apreciador no futuro, as que vão ter a música como hobby, as que poderão chegar a ser profissionais e, finalmente, aquelas que são diamantes a serem lapidados.

Alguns desses jovens se destacaram?
Já levei meninos de 12 anos para tocar no Lincoln Center em Nova York. Um jovem criado por um boia fria e uma faxineira foi cantar em Nova York e Milão e um menino do Amapá já tocou como solista na Sala São Paulo. E como esses já tivemos dezenas de casos.

Mesmo os que não sigam tocando, podem ganhar novas perspectivas a partir do contato com a música?
Sem dúvidas, porque a música transmite paixão, amor e paz, mas jamais violência. Sempre ajuda a formar um cidadão bem realizado.

Você retoma o sonho de Villa-Lobos, de ter centenas de orquestras nas escolas. É possível?
Vila lobos dizia que não é um povo inculto que vai julgar as artes, são as artes que mostram a cultura de um povo. Esta frase dele tem norteado a minha vida ultimamente.

Quantas são as orquestras jovens formadas?
Atualmente são 37 orquestras jovens, mas o sonho é formar mil. No fim do ano vou reger um coral com 1.500 crianças. Em alguns países da Ásia, a musica já está em primeiro lugar para inclusão social. Por que não conseguir o mesmo no Brasil?

Como empreendedor, continua se reinventando? Quais as metas projetos para o futuro?
Antes de tudo, minha meta é democratizar musica clássica. No dia 7 de dezembro estarei regendo em Nova York e no dia 14, numa prisão perto de Guarulhos para 1.500 detentos, para mostrar mensagem de paz na época de natal através da musica clássica. Então o que considero empreendedorismo através da música é fazer com que a música ajude de certa maneira a que cidadão tenha um sentimento baseado na emoção. Desde que existe um sentimento de emoção num ser humano existe um lado positivo em seu crescimento como pessoa.
Essa é a minha meta: que a música possa chegar a todos os setores da sociedade tanto no exterior como aqui, principalmente atingindo às pessoas menos favorecidas. Meu pai viveu até os 102 anos. Eu estou com 73, então espero ter mais uns 30 anos ainda para fazer muita coisa e tentar deixar um legado através da nova geração.

O senhor promoveu concertos a 1 e 2 dólares no famoso Carnegie Hall, em Nova York. Por que essa ideia?
Realizamos esses eventos para chamar a atenção sobre o projeto ARPA – Áreas Protegidas da Amazônia, pra mostrar a importância da preservação da floresta amazônica. A importância não era o preço. O preço servia para chamar a atenção sobre este projeto, que é o maior programa no mundo para a proteção de áreas verdes.

Outra ação inovadora sua foi realizar em um pouco inusitadas unindo a música clássica e artistas populares. Como foi isso?
A cada no escolho artistas reconhecidos para realizar dois ou três shows entre cento e tantos concertos que realizo. Há três anos foi com a escola de samba paulista Vai Vai. No ano seguinte, com a dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó. Em 2013, o escolhido foi o ator e cantor Tiago Abravanel. Para o ano que vem será com o Milton Nascimento. Esses concertos com artistas populares de grande representatividade no Brasil servem para mostrar que só existe um tipo de música, que é a musica de bom gosto. O retorno foi fantástico. Para pessoas de nariz empinado, serviu para entenderem a importância da música popular de bom gosto. E para as pessoas que só estão acostumadas com música popular, para entender a importância da musica clássica.

Como tem sido a recepção nas comunidades carentes?
É fantástico quando você percebe que sua emoção chega ao coração do público, de pessoas que jamais ouviram musica clássica. Você se emociona e o público acaba se emocionando também. A idade faz você aprimorar os sentimentos bons dentro de você e cada vez eu me emociono mais.

Uma vez na Sala São Paulo havia 1500 crianças de 6 a 11 anos de idade, todas da periferia. Quando acabou o concerto, perguntei quem teve vontade de chorar ou chorou. Todas levantaram a mão.

Como foi sua última visita ao Espírito Santo para conhecer um projeto com jovens músicos em Cariacica?
Foi o primeiro passo de um projeto do Sest/Senat, serviço do setor de transportes, no qual os jovens tiveram um primeiro contato com a música. A partir de agora vai começar uma etapa nova, para a qual eu sempre digo: “a disciplina de um atleta é a alma de um poeta”. É dessa forma que vamos começar a formar essas crianças de uma forma diferente do que usualmente é feito no Brasil.

Como avalia a música erudita no Espírito Santo?
A Orquestra Filarmônica do Espírito Santo está fazendo um trabalho maravilhoso com o maestro Helder Trefzger. Com um repertório maravilho, acho que mudou a vida da cidade de Vitória. Também está fazendo trabalho de democratização da cultura e também tenho maior respeito por ele e por seu assistente, Leonardo David.

O que diria aos jovens que querem apender e seguir carreira na música clássica?
Teve uma menina que chegou a Nova York para estudar música. Ela estava na rua 27 e queria saber como chegar ao Carnegie Hall, que fica na rua 57. Ela perguntou para uma senhora como chegar lá, pois era a primeira coisa que ela queria conhecer. A velhinha respondeu: “estudando, estudando muito”.

Está agendada sua volta tocando piano depois de quase dez anos. Como estão os preparativos?
Se Deus quiser, no dia 23 de novembro volto ao piano com a mão esquerda, mas ainda é uma luta que só vamos saber uma semana antes de sai dar certo. Os preparativos são com muito estudo e muita fisioterapia.

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