O perfil do mercado global nos próximos 20 anos resultará do embate de projetos concorrentes de expansão e influência esquadrinhados por EUA e China, o “G2” do mundo atual.
Muitos acontecimentos corroboraram essa visão. Durante a presidência Obama, os sócios, no Pacífico (por meio do TPP, Tratado da Parceria Transpacífico) e no Atlântico (mediante o TTIP, sigla em inglês para Parceria Transatlântica de Comércio e Investimentos), se predispunham a disputar o jogo da economia global a partir dos mesmos padrões para legislação trabalhista, proteção ambiental, propriedade intelectual, compras governamentais.
No caso da investida no Pacífico, a estratégia dos EUA sob Obama era dotar o “Pivô para a Ásia” de sua política externa de uma grande frente econômica para contrapor-se, ou, na melhor das hipóteses, “modular” a ascensão da China.
Tal arremetida econômica chinesa, como se sabe, se produziu com seus parceiros fazendo vistas grossas ao desdém que a China nutriu por seguir diretrizes internacionais no campo do trabalho, da sustentabilidade, das patentes e de políticas industriais favoráveis ao conteúdo local.
A lógica da diplomacia econômico-comercial de Obama era clara: os EUA dispõem de vantagens na consolidação de cadeias globais de valor. Mais globalização, assim, significa mais competitividade para a economia dos EUA.
E, se setores de menor valor agregado aqui e ali veem seus postos de trabalho migrar para “LCCs” (sigla em inglês para “países de baixo custo”), a prosperidade incremental da economia americana como um todo poderia filtrar recursos necessários para o retreinamento da mão de obra.
Nessa linha, a política externa de Obama pouco se diferenciou da tradição dos EUA no pós-Segunda Guerra – a maior economia do mundo era também a mais vocal e atuante em prol de comércio mais livre.
Durante a campanha de 2016 à Casa Branca, o agora presidente Donald Trump quebrou com essa trajetória em favor do livre comércio. Os EUA se distanciaram do TPP logo no primeiro dia do novo governo. Com isso, em grande medida, os EUA despedem-se do tipo de globalização econômica e normativa que preconizaram durante décadas.
E o “timing” de tal despedida não poderia ser mais curioso. Ele se dá em sincronia com a contínua expansão de outro processo globalizador, liderado pela China, e que teve avanços de enorme importância na última reunião de Chefes de Governo da APEC (Associação para Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico).
Na Cúpula, o presidente chinês Xi Jinping foi categórico: “A China não fechará suas portas para o mundo lá fora; pelo contrário, vai escancará-la”. E acrescentou: “vamos nos envolver cada vez mais na globalização econômica”.
Pequim deseja negociar uma grande área de cooperação econômica para o Pacífico, a Alcap (Área de Livre Comércio da Ásia-Pacífico). Lidera recém-criada agência para investimentos de infraestrutura na Ásia e o Novo Banco de Desenvolvimento, o banco dos BRICS.
Capitaneia o projeto “One Belt, One Road”, principal iniciativa de integração terrestre e marítima na Eurásia. Com tudo isso, além do conhecido interesse chinês na África e na América Latina, a China dá provas inegáveis de que sua extroversão é multidimensional.
Com os EUA na linha de frente da globalização, a maior interdependência econômica se fazia acompanhar de valores – como democracia representativa e livre mercado, enfim, o “Ocidente” – que se queriam universais. É como se tal patrimônio intangível do Ocidente fosse uma “ideia em expansão”.
Já com China assumindo as rédeas da globalização, se existe muito que propor tendo Pequim como epicentro de comércio e investimentos, há menos em termos de valores chineses que sejam “exportáveis”.
O “Sonho Chinês”, proposto por Xi Jinping desde que chegou ao pináculo do poder em seu país em 2013, é essencialmente nacionalista.
Muito do retumbante sucesso chinês nestes últimos 40 anos se deu por Pequim saber o que queria “do” mundo. E conseguiu implementar tal decisão com magistral eficiência – a ponto de a China provavelmente estar a apenas uma década de se tornar a maior economia mundial medida pelo PIB nominal.
Ainda assim, não será nada fácil para a China liderar a globalização. Não é certo o futuro da China como superpotência para além da economia.
Nesses tempos trumpianos, há, é claro, uma enorme tentação em buscar compreender o tabuleiro global como um jogo de soma zero.
Se, de fato, Washington e Pequim são os protagonistas —o “G2” do mundo contemporâneo—, EUA em voluntária reclusão significa maior escala específica para a China.
Tal percepção foi amplamente reforçada nos últimos meses. Xi Jinping foi saudado como grande timoneiro da globalização por Klaus Schwab no Fórum de Davos
Em março deste ano, o Chile sediará uma reunião de alto nível com os países que negociaram a TPP, exceto os EUA, e a China está convidada.
É também notável, na Europa, que mesmo em termos econômicos a noção de “Atlântico Norte” está se enfraquecendo. Seja a partir da plataforma comunitária em Bruxelas, seja como decisão de cada capital, os países europeus parecem operar seu próprio “pivô para a Ásia”). Acrescente-se a essa conjuntura insularizada e individualista dos EUA um poderio econômico chinês que vai além do comércio.
Se, desde 2013, com marca superior a US$ 4 trilhões na soma de importações e exportações, a China já ultrapassara os EUA como principal nação comerciante, esse vigor também é crescentemente sentido nas áreas de investimentos estrangeiros diretos (IEDs), financiamento para o desenvolvimento e empréstimos “governo a governo”.
Tudo isso credencia, então, a China como “líder da globalização”? Embora nos últimos dias os chineses tenham elogiado aos quatro ventos as benesses da interdependência econômica, a ideia de assumir a frente organizadora de um novo sistema global é algo distante do consenso nos círculos decisórios de Pequim.
A mundialização da China ademais da economia não é nada fácil. A China não é um “role model”. Pouco irradia em termos de “poder suave”.
No sistema coletivo de paz e segurança, a China está menos no palco e mais na plateia. Pouco tem oferecido em tropas ou recursos para missões de paz ordenadas pelo Conselho de Segurança da ONU.
Mesmo em sua própria estrutura de projeção de poder, mera comparação com os EUA revela grandes distâncias. Um norte-americano gasta em média 18 vezes mais a cada ano em defesa que um chinês.
E mais: liderar a globalização significa defender ideais e padrões que sejam — ao menos como tarefa em construção — “universalizáveis”.
É possível imaginar a China à frente de negociações para a padronização transnacional de práticas em áreas como propriedade intelectual, meio ambiente ou compras governamentais?
Muitos países obviamente se enamoram com a trajetória de crescimento econômico na China. E pode-se, de fato, aprender muito com o modelo chinês. Ele, no entanto, não é replicável em outros contextos nacionais.
Ainda que a atual pujança chinesa seja inquestionável – e seu poder relativo só deva aumentar nos próximos anos –, o que a China teve até agora foi apenas uma “grande estratégia” para si.
Para liderar, os chineses têm de saber não apenas o que querem “do” mundo, mas “para” o mundo.
Marcos Troyjo é Economista e cientista político