Livro de Affonso Cláudio evidenciou o protagonismo dos escravizados e a brutal repressão desferida contra a revolta ocorrida na Freguesia de Queimado
Por Ueber José de Oliveira
Há 140 anos Affonso Cláudio lançava o seu mais comentado livro, “Insurreição do Queimado: episódio da história da Província do Espírito Santo”, um opúsculo por meio do qual evidenciou o protagonismo dos escravizados, e a brutal repressão desferida contra a revolta ocorrida na Freguesia de Queimado (hoje município de Serra-ES).
Tal Insurreição ocorreu em 19 de março 1849, dia da inauguração da igreja local, consagrada a São José. Foi consequência de uma promessa de liberdade não concretizada, supostamente feita pelo frei Gregório de Bene, e o não cumprimento, teria levado à deflagração do levante, cujos partícipes foram condenados à morte.
A obra foi de grande importância tanto para a época, quanto para a posteridade, a ponto de repercutir até os nossos dias, o que não por acaso levou o historiador Luiz Guilherme Santos Neves, que reeditou o livro no final dos anos 1970, a afirmar que “foi o primeiro e até hoje mais completo estudo sobre a revolta, leitura obrigatória a todos quantos, depois dele, versaram sobre o mesmo tema”.
Mas seus significados vão muito além. Inequivocamente, Affonso Cláudio, naquele momento um jovem de 25 anos, travava uma encarniçada batalha política contra o ardiloso Basílio Carvalho Daemon, um dos principais representantes da classe senhorial e escravocrata da Província, ávidos por manterem o status quo, tarefa para a qual fazia uso do seu jornal, O Espírito-Santense, como uma verdadeira máquina de guerra. Em resposta, Affonso Cláudio, junto com seus companheiros abolicionistas, tinha motivos mais que suficientes para apostar em algo de maior impacto para dar uma resposta mais incisiva a Daemon sobre a questão da escravidão. O livro em apreço, nesse caso, foi a maneira de demarcar posição sobre o cativeiro, que naquela quadra já dava sinais de esgotamento.
Levando em conta esses fortes embates, não é difícil perceber que Affonso Cláudio direcionou o peso da sua crítica a Daemon, que havia publicado em 1879 o livro Província do Espírito Santo: sua descoberta, história chronológica synopsis e estastística, no qual fez um ligeiro comentário acerca da rebelião do Queimado, mas que, conforme corretamente sentenciou o historiador Estilaque dos Santos, “mostrou uma postura francamente favorável ao tratamento dado à questão, elogiando de forma aberta o próprio encarregado de repressão e seus procedimentos”.


Por conta de seu posicionamento, assim como pelo fato de outras publicações do período não tratarem deste e de outros vários assuntos relativos à província, a produção historiográfica era considerada insuficiente para Affonso Cláudio.
Por essa razão, a obra teve um significado também de caráter historiográfico: representou uma espécie de agenda de Affonso Cláudio, entendida por ele como fundamental, o de preencher as lacunas historiográficas do Espírito Santo. E este é um dos pontos fortes do trabalho: a preocupação constante com as fontes. Em um trecho do livro, Affonso afirma que tentou “[…] rememorar um dos notáveis sucessos do torrão provincial, sem ter é verdade documentos que me servisses de guia seguro com relação aos vários aspectos do que a Insurreição do Queimado deve ser estudada”. Para preencher tais limites documentais, recorreu a relatos, tomando diversos cuidados que o recurso requer.
Portanto, pela importância tanto do autor, quanto da obra, ambos merecem ser permanentemente revisitados no sentido de se derrubar certos mitos, estereótipos e anacronismos consagrados na historiografia capixaba. Ademais, os problemas diagnosticados no livro permanecem em aberto, razão pela qual relembrá-lo pode significar importante chave de leitura para nossos dilemas contemporâneos.
Ueber José de Oliveira é professor do Departamento de História – UFES