O trabalhador da era digital é constantemente vigiado, avaliado por métricas algorítmicas e impossibilitado de contestar decisões tomadas por sistemas automatizados
Por Ricardo Paixão
Vivencia-se, na contemporaneidade, um novo estágio do capitalismo que, em sua fase digital, opera com uma lógica de controle e dominação jamais experimentada em períodos anteriores. Tal realidade foi sintetizada de maneira precisa pelo sociólogo Ricardo Antunes ao denominar este período como “A Era da Escravidão Digital”.
O avanço vertiginoso das tecnologias de informação e comunicação, a consolidação da inteligência artificial e a automação de processos, embora representem uma revolução técnico-científica sem precedentes na história, são acompanhados por profundas transformações nas formas de organização do trabalho, nas relações sociais e na estrutura econômica. Contudo, o que se apresenta como inovação tecnológica e modernidade esconde, sob uma camada de aparente neutralidade algorítmica, um regime de intensa exploração, em que o controle é exercido por mecanismos invisíveis, mas absolutamente eficazes.
O algoritmo, enquanto elemento central dessa nova lógica, não apenas organiza e gerencia dados, mas estrutura o próprio funcionamento das plataformas digitais, coordenando, em tempo real, a produção, a oferta de serviços, o comportamento dos usuários e, principalmente, o trabalho. A particularidade dessa era reside no fato de que os algoritmos, embora invisíveis e tecnicamente neutros, são controlados por um número extremamente reduzido de executivos das grandes corporações transnacionais, como Amazon, Google, Meta e Uber.
Esses agentes, os CEOs dessas empresas, detêm não apenas o domínio econômico, mas o controle sobre o próprio tempo e ritmo da produção, assim como sobre a forma como milhões de pessoas interagem com o mundo digital — e, por consequência, com o mundo real. A falta de transparência desse sistema torna quase impossível identificar quem, de fato, é o empregador, quem define as regras e como se dá a regulação dessa nova dinâmica de trabalho.
Um exemplo emblemático desse processo é o da Uber, empresa fundada em 2009, que, ao se consolidar como uma das principais plataformas de transporte urbano no mundo, instituiu um novo paradigma nas relações laborais. Diferentemente do modelo fordista, baseado na contratação formal, com carteira assinada, jornada fixa e direitos trabalhistas assegurados, a Uber passou a operar sob a lógica da informalidade disfarçada de autonomia.


O trabalhador é, ao mesmo tempo, prestador de serviço, proprietário do meio de produção — o veículo — e responsável por todos os custos operacionais. Não há jornada definida, tampouco salário fixo. A empresa, por sua vez, assume apenas a função de mediação por meio de um aplicativo, retirando-se das obrigações que tradicionalmente caberiam ao empregador. Ao mascarar essa relação como uma parceria empreendedora, exime-se de encargos sociais, previdenciários e trabalhistas, promovendo um modelo de negócio extremamente lucrativo e financeiramente desonerado.
Esse modelo, no entanto, longe de promover a tão propagada liberdade individual e inovação, resgata formas de precarização laboral típicas do século XIX, em que os trabalhadores estavam à mercê das condições impostas pelos detentores dos meios de produção. A diferença fundamental está no uso da tecnologia como mecanismo de intensificação do controle.
O trabalhador da era digital é constantemente vigiado, avaliado por métricas algorítmicas, penalizado por baixos desempenhos e, muitas vezes, impossibilitado de contestar decisões tomadas por sistemas automatizados, sem qualquer espaço para negociação coletiva ou amparo jurídico efetivo. Trata-se, portanto, de uma reconfiguração da relação capital-trabalho, em que a mediação tecnológica impõe um novo tipo de subordinação: silenciosa, invisível, mas profundamente coercitiva.
A Era da Escravidão Digital, portanto, não representa apenas uma etapa avançada do desenvolvimento tecnológico, mas um regime de exploração que se reinventa, utilizando os recursos digitais para aprofundar a lógica da acumulação e da desigualdade. Em nome da eficiência e da inovação, suprime-se direitos, fragmenta-se o vínculo empregatício e intensifica-se a vulnerabilidade de milhões de trabalhadores em todo o mundo. É urgente, portanto, que se reflita criticamente sobre os rumos desse processo, que se discutam alternativas regulatórias e que se reafirme o papel do trabalho como categoria central na construção de uma sociedade justa e democrática.
Ricardo Paixão é economista, mestre em Economia, doutorando em Educação – UFES, professor efetivo da Faculdade de Ensino Superior de Linhares-ES – FACELI e conselheiro do Conselho Regional de Economia do Espírito Santo